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Transcript

Ricardo Reis, um dia que está dormitando, na entre manhã, cedíssimo para os seus novos hábitos de indolência, ouve salvarem os navios de guerra no Tejo, vinte e um espaçados e solenes tiros que faziam vibrar as vidraças, julgou que era a nova guerra que começava, mas depois lembrou-se de notícias que lera no dia anterior, este é o Dez de Junho, a Festa da Raça, para recordação dos nossos maiores e consagração destes que somos, em tamanho e número, às tarefas do futuro. […] À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá toda a sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habituados. Tivesse Ricardo Reis saído nessa noite e encontraria Fernando Pessoa na Praça de Luís de Camões sentado num daqueles bancos cmo quem vem apanhar a brisa, o mesmo desafogo procuraram famílias e outros solitários, e a luz é tanta como se fosse dia, as caras parecem elas tocadas pelo êxtase, percebe-se que seja esta a Festa da Raça.

10 de junho de 1936 sob o olhar de Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê, o inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e diz, Foi inveja, meu querido Pessoa, mas deixe, não se atormente tanto, cá onde ambos estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão cem vezes, outro lhe há de chegar em que desejará que o neguem. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa (Cap. XVI – excerto)

Ricardo Reis, um dia que está dormitando, na entre manhã, cedíssimo para os seus novos hábitos de indolência, ouve salvarem os navios de guerra no Tejo, vinte e um espaçados e solenes tiros que faziam vibrar as vidraças, julgou que era a nova guerra que começava, mas depois lembrou-se de notícias que lera no dia anterior, este é o Dez de Junho, a Festa da Raça, para recordação dos nossos maiores e consagração destes que somos, era tamanho e número, às tarefas do futuro. […] À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá toda a sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habituados. Tivesse Ricardo Reis saído nessa noite e encontraria Fernando Pessoa na Praça de Luís de Camões, sentado num daqueles bancos como quem vem apanhar a brisa, o mesmo desafogo procuraram famílias e outros solitários, e a luz é tanta como se fosse dia, as caras parecem elas tocadas pelo êxtase, percebe-se que seja esta a Festa da Raça. Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê, o inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e diz, Foi inveja, meu querido Pessoa, mas deixe, não se atormente tanto, cá onde ambos estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão cem vezes, outro lhe há de chegar em que desejará que o neguem. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa (Cap. XVI – excerto)

Ricardo Reis, um dia que está dormitando, na entre manhã, cedíssimo para os seus novos hábitos de indolência, ouve salvarem os navios de guerra no Tejo, vinte e um espaçados e solenes tiros que faziam vibrar as vidraças, julgou que era a nova guerra que começava, mas depois lembrou-se de notícias que lera no dia anterior, este é o Dez de Junho, a Festa da Raça, para recordação dos nossos maiores e consagração destes que somos, era tamanho e número, às tarefas do futuro. […] À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá toda a sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habituados. Tivesse Ricardo Reis saído nessa noite e encontraria Fernando Pessoa na Praça de Luís de Camões, sentado num daqueles bancos como quem vem apanhar a brisa, o mesmo desafogo procuraram famílias e outros solitários, e a luz é tanta como se fosse dia, as caras parecem elas tocadas pelo êxtase, percebe-se que seja esta a Festa da Raça. Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê, o inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e diz, Foi inveja, meu querido Pessoa, mas deixe, não se atormente tanto, cá onde ambos estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão cem vezes, outro lhe há de chegar em que desejará que o neguem. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa (Cap. XVI – excerto)