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Reportagem exclusiva OP+ "Memórias compartilhadas da juventude cearense nos anos de 1970"

Transcript

Leia a íntegra das cartas

Meu amigo, eu tencionava remeter a carta imediatamente, mas, por motivos óbvios, isto não foi possível.Escrevi para Tiago também. Ambas as cartas, sua e dele, envio hoje (amanhã - leia última página).Estou com um monte de troços na cabeça para escrever uma coisa grande. Não sei como é que vai ser. Fiz um rápido resumo dessas ideias e mandei-as para Tiago, pedindo-lhe opiniões. Eis o que ele disse: “Sua ideia é boa, escreva-a. Os personagens são atuais, são bem escolhidos”.… Comentar. Opinar. Protestar. Tudo como lá na Princesa do Cariri. Você se lembra, Chico: se algum de nós escrevia o que quer que fosse, todos tomávamos conhecimento. Vivíamos, torcíamos, com e pelos personagens. Coisas nossas.Tem recebido notícias de Crato? Jornais? Só recebi um até agora. Eles se esquecem da gente, não é?“E nossa revista”? Ah! A revista de vocês. Isso é lá com Tiago. Recife é a sede, não é? Faço vestibular de Arquitetura em janeiro, Tiago também. Ótimo. Diga para o Hermano (Valdivino de Brito) escrever. É bom saber notícias dele. Pergunte sobre Zé Esmeraldo.Hoje é quase certeza invadirem a universidade. Vivem-se, por aqui, dias bastante movimentados. Acontece cada uma. Cinco policiais foram presos, por estudantes, inclusive um do SNI. A turma tomou-lhes as armas, munição e algema. Fizeram-lhes interrogatórios. Tirou-se fotografia deles, por precaução. Entretanto, foram soltos em seguida, sem maiores danos.Sabe Assis, os colegas acham que é melhor não mandar as cartas amanhã. Podem ser apreendidas. Tudo pode acontecer.Quando será que nos encontraremos para bater um bom papo, como nos velhos (tão ontem e tão longe) tempos? Em julho? Em janeiro? Ou antes? … Se eu for aí? Té outra.

Pedro de Lima

A revista de vocês

Brasília, 3/4/1968

A revista de vocês

Caro amigo Assis,Antes de mais nada, “Pra você” já tinha sido samba uns dias antes da sua carta chegar em minhas mãos. Eu que sempre fiz melodias antes de letras, ou, quando muito, simultaneamente, e que até certo ponto condenava as parcerias de letras preexistentes, não resisti à musicalidade do poema, cuja métrica e ritmo faziam despertar acordes a qualquer sangue de sambista. Além do mais, qualquer melodia de decurso normal parecia se adaptar aos versos de “Pra você”.Mas é claro que não foi pelo ritmo e pela métrica que eu tomei o violão tentando harmonizar acordes e retirar a música intrínseca que escondia o poem. Foi bem mais pelos momentos poéticos, às vezes de uma profunda melancolia, e outros de uma alegria taciturna e pia. Os nove primeiros versos são extraordinários. O que mais me sensibiliza é aquele em que diz ter visto toda a dor da lua e que com ligeiras modificações minhas, fica assim:“Pude olhar o sol sem nenhum medovi no céu tantos segredosvi na lua tanta dor…”O último verso talvez seja a coisa mais lírica que já vi dizer sobre a lua. Na verdade, a lua encerra mais dor do que simples romantismo, como é de tradição. Em “Izabel” também, quis deixar a lua a impressionar uma espécie de agonia poética. Para os três últimos versos, melodia e letra atingem ao mesmo tempo o ponto mais alto da canção:“Tudo te entreguei, mas não hesiteé o que de melhor existeentre a rosa e a minha dor.”

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Pra você

Belo Horizonte, 30/09/1968

Pra você

Pela única vez, como vê, tomei a liberdade de modificar rapidamente o conteúdo, pois é certo que no amor não se dão somente as boas coisas existentes entre os extremos da rosa e do amor, mas também e infelizmente muita coisa má.Espero mais cartas e alguns outros poemas. A propósito, os seus poemas me lembram do genial poeta francês Rimbaud, cujas melhores coisas foram feitas aos seus 18 anos. Seria interessante que você lesse desse poeta alguma coisa. Sugiro Uma estação no inferno ou Uma temporada no inferno.

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Pra você

(Contiuação)

Eugênio Gomez

Comentário de Eugênio Gomez: “Izabel perdeu-se na poeira do tempo. ‘Pra você’ ainda espera, num fundo de gaveta. Quanto a Rimbaud, levei um susto, acho que foi por esnobismo falar bem dele. Hoje digo que ele é nada”.

Pra você

Oi, Assis!Flamínio enviou tua carta para cá. Deixei o Crato com alegria, alegria, porque eu já não suportava mais aquilo ali. Ainda consegui brincar os dois últimos dias de carnaval na AABB, mas foi um troço quase vago. Aqui, que quase não conheço ninguém, me sinto ótimo e livre.Estou provisoriamente na casa de minha tia. O endereço segue no envelope. Passei, sabes. Um 8 fenomenal! Mas o tanto que estudei! Deixei o Crato com teatro, com Nacélio reprovado, com Haroldo em Fortaleza, com o jornal pende-pende mas continuará (embora não saiba como). Bebeto passou, também. Gostei do que disse Belo dos Produtos manchados (primeira parte de “Fome de azul”).Você está se sentindo desligado, não é? Eu também. Então, ao que tudo indica, somente Pedro Antônio está se realizando nas Letras… Mas continuo escrevendo, e acredito haver algo sólido nos meus contos.“A pintura se aproxima mais e mais da poesia. A fotografia a libertou do anedótico. Tal como a música, ela deve subsistir por seus próprios meios.” (George Braque)Se tiveres tempo, lê Guimarães Rosa - é bacana!Estou frequentando cursinho, este ano. Quanto à carreira, tive que fazer teste vocacional. Ainda receberei resultado.Não desanime! A flor não murchará. J. de Figueiredo Filho aceitou Futuro. No próximo número de Itaytera sairá, juntamente com meu conto “O mágico”. Enviarei para você. Eudes? Mande o seu endereço. Preciso receber o calendário com as poesias classificadas.

Crato, Adeus

Recife, 12/3/1968

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Crato, Adeus

“Já se ouve cantar o negro,Que saudade, pela serra,Os corpos naquelas águas,- As almas, por longe terra.Em cada vida de escravo,Que surda, perdida guerra!”(Cecília Meireles)Creio que é só. Continue escrevendo.

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Crato, Adeus

(Contiuação)

O amigo, Tiago.

Comentário de Tiago Araripe: "Quem diria que, décadas depois, eu mudaria tanto o conceito com relação ao Crato e ao sentimento de liberdade. Há muito as grandes metrópoles já não me motivam. Que o diga a decisão pela pequena Bombarral, de onde escrevo agora do outro lado do Atlântico. O Cariri é um sonho - um dia espero retornar a ele".

Crato, Adeus

Somente depois que cheguei ao Rio e pude estabelecer-me em endereço definitivo é que me dispus a te escrever. Como fiquei dependendo de exames no colégio estadual, minha viagem foi adiada até princípio de abril. Você não imagina quem veio comigo e está residindo aqui no Rio, na casa de um irmão do cunhado dele! - Lenilton, o eterno inquilino da praça Siqueira Campos…Depois que saímos do Crato, passamos alguns dias (dois ou três) em Salvador. Quando aqui chegamos, as manifestações estudantis estavam menos intensas e os ânimos mais acalmados.É lamentável que o movimento estudantil tenha que partir para a violência, mas quando há que se pagar um alto preço para a implantação de princípios mais humanos… é mister qualquer sacrifício. Talvez eu tenha me expressado mal, talvez não seja violência a luta em nome das coisas sublimes. Não, não é violência, tenho certeza.Em Salvador as manifestações foram pacíficas, pois o Secretário de Segurança permitiu a passeata. Agora, em Salvador mesmo, houve um fato que eu considero da máxima importância. Olha aqui, se passa uma banda desfilando na rua, sai tudo que é gente pra olhar. Pois olhe, no dia 31 de março, o exército desfilou sem que houvesse em toda a avenida uma só pessoa, parada, vendo odesfile. Não é exagero, não, foi assim mesmo. Classifiquei essa atitude como importantíssima, porque foi espontânea, foi um gesto do povo.Bem, mudando de assunto, se bem que numa hora dessas não se deva nunca mudar de assunto. Vou fazer o cursinho e não estou ainda bem certo quanto ao vestibular que farei. Não acho importante que se tenha um diploma - simplesmente um canudo de papelão, principalmente aqui no Brasil, onde isso é mais um furúnculo da vaidade para aqueles privilegiados que conseguem o tal “canudo”.

Cidade "Despersonalizada"

Rio, 19/4/1968

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Cidade "Despersonalizada"

Desta vez vamos mudar de assunto, mesmo! Como vai você, aí pela terra-dos-que-não-podem-parar? Mande notícias, é sempre bom saber como passa um amigo. Depois que somos largados assim numa cidade despersonalizada, ou melhor, de habitantes despersonalizados, a gente se sente quase que esmagado e é preciso que possamos nos agarrar nas pessoas que tenham "características" para nós. Acho que me sinto mais ou menos como Jean-Christophe quando chegou a Paris… Espero que você escreva logo. Té mais. Zé.Comentário de José Esmeraldo: “Cheguei ao Rio em 5 de abril de 1968, uma sexta-feira, apenas uma semana depois do assassinato do estudante Edson Luís no Calabouço, o restaurante dos estudantes. Dias antes, uma multidão acompanhara o enterro do rapaz morto a tiros pela polícia. Eu estava matriculado em um cursinho pré-vestibular e, na segunda-feira seguinte, fui à aula. Talvez essa transição rápida explique a ênfase dramática da frase ‘somos largados em uma cidade despersonalizada’. Depois de alguns protestos violentos, a cidade experimentava uma trégua. Nos meses seguintes, maio e junho, o Centro do Rio se transformaria em um campo de batalha ainda mais violento. As balas não eram de borracha.Provavelmente o missivista estava assustado ou se sentindo ‘esmagado’, como diz. Na carta, ainda mistura os acontecimentos com o seu próprio caos. A tentativa de explicar o momento político é tosca, mas carrega um dilema que se acentuaria entre muitos jovens nos anos seguintes: a discussão da violência como instrumento da luta política e sua legitimidade diante da opressão. Já as opiniões sobre diplomas e ‘canudos’ soam, no mínimo, exóticas, fúteis. Não parecem legítimas vindo de quem se preparava para entrar em uma faculdade. Soam como arroubos, releve-se, mas não que não seja perdoado por escrever… ‘é mister’”.

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Cidade "Despersonalizada"

(Contiuação)

José Esmeraldo

Cidade "Despersonalizada"

Estive no Crato - muita chuva, muito verde - bonito. Voltei dez dias depois. Obrigado pelo livro e pelas xilogravuras. Li. Gostei. Bem-feito. Ando esquecido de como se faz uma carta. Era pra ter mandado antes desta. Descuido.Parei como fumo. Foi suficiente - não sei pra quê, mas foi. Tomo aulas de inglês, com um cara, aqui perto do apartamento. Me dedico com disposição. Quero ler e falar.Ando lendo sobre padre Cícero - depois “Os Sertões” e outras coisas de Nordeste e sociologia. Me disponho a fazer um trabalho sobre a bisavó de meu pai, que foi senhora de engenho e coiteira, no centro-sul do Ceará - Lavras da Mangabeira. Vai demorar um ou dois anos para a reunião do material. Depois te falo sobre.Uma nuvem de pragmatismo entre o apartamento e o Banco - a funcionalidade de acordar e depois dormir.Sonho em fazer um curta-metragem com um amigo cinegrafista daqui - um levantamento do que sobrou dos hippies baianos - as consequências de todo o movimento - suas principais resultantes. Projeto. Tenho que fazer o argumento. Nada fiz além de ter vontade.Otávio passou por aqui. Do mesmo jeito otaviano de antigamente. Vai voltar para Recife e morar em Olinda - deves ter tido contato com ele.O show de Gil. Lindo. O mesmo que fez em Recife o ano passado. O que - me diga - eu poderia dizer sobre Gil num show? fortevalentesherazadesorumbático.Assis, será que estás sentindo essa falta de literatura na literatura do mundo? Ou que já disseram tudo e eu não tenho mais nada com isso.Hoje desci a ladeira da Barra para ver o pôr do sol. Saiu bonito.Estive doente depois de comer carne de carneiro e feijão em excesso. Inflamaram-me os intestinos - fígadoestômagorimbaço - fiz regime durante quatro dias e melhorei. Agora como somente peixe. Márcia - ainda bem - cozinha de maneira inteligente.

Ler e calar

Salvador, 18/1/1973

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Ler e calar

Ando pensando em organizar uma equipe - quatro caras - e passar a estudar publicidade e depois montar uma empresa - senão de nada vai adiantar a perda de tempo de escola. Seria uma saída. Mas se isso não der certo, fazer qualquer coisa - nem que seja só ler e se calar. Deglutir.Gosto de sociologia e antropologia - e de psicologia social. Acho que só. As manifestações culturais, sim. As vanguardas - não as aguento mais.Lévi-Strauss escreveu que desconfia profundamente que estamos vivendo um período sem manifestações culturais.Tudo muito pessoal de se dizer e contar. Márcia lhe manda um abraço. Como vai Elizabeth? Recebi notícias de Tiago - com ele tudo bem. Um abraço do amigo Emerson.Comentário de Emerson Monteiro: “Tempos baianos de sonhos, esperança e coragem. Bons amigos. Vivi com intensidade esses anos 1970, fase que durou sete anos de muitos filmes de arte, teatro, shows, fotografia, cinema, curso de comunicação, praias, fumo, amores, macrobiótica, viagens, saudades cearenses, expectativas políticas democráticas, jornais, livros e livrarias, festas de largo, amizades, trabalho, estudos…Hoje mantenho essa fase no mais íntimo de mim, com reconhecimento do quanto a Bahia me deu de bom, novos valores, novos delírios e firmeza no meu coração”.

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Ler e calar

(Contiuação)

Emerson Monteiro

Ler e calar

A sepultura estudantil se chama injustiça social. Janeiro, fevereiro, margens, pulgas mil, mato adentro. Colorido indigente. Nessas bandas é preciso deixar de molho - feito cachaça de índio da longe selva - para fermentar. Vivo estado experimental da saturação, da alegria, da liberdade, das palavras, do geral específico ou variado, das paredes do vazio tirando faísca fricção ficção.Autêntica ou não? Só sei que arranha e resvala na carne enlatada das mil leituras trezentas rotações. Hoje tem genial de heroísmo - a festividade - os caretas na festa unidos irmãos. A garnde volta seria se engurujar os fanatismos, no exato momento sair assobiando pela raiz, rindo realidade em todos os tons possíveis, para todos os níveis. Quase quase. A TFP são as nossas defesas em extensão.Ponto.Talvez agora eu vá estudar: Fortaleza. Cheguei do Crato, 32 graus. No noturno. Vou desligar.Não entendo dos teus formulários - estás com a razão dos bocejos a amizade. Ter o que falar se chama falta de assunto. Nasci para o silêncio e informado fiquei e tudo isso não tem nada a ver. Mestre Assis, faquir, não - ficar . Miguel Teúnas faz do Crato “cortição” sindical.Dor de barriga. Cumprir o dever e ser responsável são valores impostos de fora pra dentro. Inclusive faço molecagem com as filhas dos outros. E de vez em quando gazeio aula - três por semana. Semana semana semana semana semana semana semana semana semana semana.Fiquei acordado no ônibus em noite de luar.Na geladeira tem refresco de caju. No apartamento em Recife não tinha. Acho que é isso que me prende a essa cidade.

Estado experimental

Fortaleza, 6/11/1971

Flamínio Araripe