Want to make creations as awesome as this one?

Interpretação de poemas de Língua Portuguesa

More creations to inspire you

Transcript

Nota explicativa

Poemas 1

Poemas 2

Poemas 3

Catálogo Poesia

Fernando Pessoa Eros e Psique Dito por Maria Bethânia Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino — Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa O amor, quando se revela Interpretado por Salvador Sobral (Presságio) O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há-de dizer. Fala: parece que mente... Cala: parece esquecer... Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse P'ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...

Alda Lara Prelúdio Interpretado por Paulo de Carvalho e Matias Damásio (Mãe Negra) Pela estrada desce a noite Mãe-Negra, desce com ela... Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninos que gostava de embalar?... Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?... Mãe-Negra não sabe nada... Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra!... Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar... Muitos partiram p'ra longe, quem sabe se hão-de voltar!... Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada. É a tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada.

António Gedeão Lágrima de Preta Interpretado por Adriano Correia de Oliveira Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

António Gedeão Pedra Filosofal Interpretado por Manuel Freire Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Alexandre O'Neill Há palavras que nos beijam Cantado por Mariza Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.

José Régio Cântico negro Dito por Diogo Infante "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí!

António Lobo Antunes Disse-te adeus à partida Interpretado por Kátia Guerreiro Disse-te adeus á partida Digo-te adeus á chegada Se quero tudo na vida Já de ti, não quero nada Se quero tudo na vida Já de ti, não quero nada Disse-te adeus e depois Fiquei no mesmo lugar No leito de nós os dois Só tem raízes no meio No leito de nós os dois Só tem raízes no meio Dizer adeus é diferente Quando te digo baixinho No meio de tanta gente É que me sinto sozinho No meio de tanta gente É que me sinto sozinho Como a gaivota na voz Disse-te adeus e parti Se esta cama somos nós Não hei de morrer sem ti Se esta cama somos nós Não hei de morrer sem ti

Sérgio Godinho O primeiro dia Interpretado por Sérgio Godinho A princípio é simples, anda-se sozinho Passa-se nas ruas bem devagarinho Está-se bem no silêncio e no burburinho Bebe-se as certezas num copo de vinho E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo Diz-se do passado, que está moribundo Bebe-se o alento num copo sem fundo E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E é então que amigos nos oferecem leito Entra-se cansado e sai-se refeito Luta-se por tudo o que se leva a peito Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja Olha-se para dentro e já pouco sobeja Pede-se o descanso, por curto que seja Apagam-se dúvidas num mar de cerveja E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Enfim duma escolha faz-se um desafio Enfrenta-se a vida de fio a pavio Navega-se sem mar, sem vela ou navio Bebe-se a coragem até dum copo vazio E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E entretanto o tempo fez cinza da brasa E outra maré cheia virá da maré vaza Nasce um novo dia e no braço outra asa Brinda-se aos amores com o vinho da casa E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Regina Guimarães Asas Delta Interpretado por Clã Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés e salto Sinto um formigueiro nas mãos e nos braços passarinhos na cabeça Cata-vento nos ouvidos mil antenas nos cabelos Quem me leva tenho pressa Pé de cabra, pé de dança Dançar por gosto não cansa Não vou só, levo o meu bando a dança nos vai juntando Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés e salto Se me pesa o traseiro levanto o meu nariz perco o medo e a vergonha Fecho os olhos aí vou e já não estou onde estou nem sei quando posso parar Pé de cabra, pé de dança Dançar por gosto não cansa Não vou só, levo o meu bando a dança nos vai juntando Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés E salto Mais alto

Jorge Palma Encosta-te a mim Interpretado por Jorge Palma Encosta-te a mim Nós já vivemos cem mil anos Encosta-te a mim Talvez eu esteja a exagerar Encosta-te a mim Dá cabo dos teus desenganos Não queiras ver quem eu não sou Deixa-me chegar Chegado da guerra Fiz tudo p´ra sobreviver, em nome da terra No fundo p´ra te merecer Recebe-me bem Não desencantes os meus passos Faz de mim o teu herói Não quero adormecer Tudo o que eu vi Estou a partilhar contigo O que não vivi, hei-de inventar contigo Sei que não sei Às vezes entender o teu olhar Mas quero-te bem Encosta-te a mim Encosta-te a mim Desatinamos tantas vezes Vizinha de mim Deixa ser meu o teu quintal Recebe esta pomba que não está armadilhada Foi comprada, foi roubada, seja como for Eu venho do nada Porque arrasei o que não quis Em nome da estrada, onde só quero ser feliz Enrosca-te a mim Vai desarmar a flor queimada Vai beijar o homem-bomba, quero adormecer Tudo o que eu vi Estou a partilhar contigo, e o que não vivi Um dia hei-de inventar contigo Sei que não sei, às vezes entender o teu olhar Mas quero-te bem Encosta-te a mim Encosta-te a mim Quero-te bem Encosta-te a mim

Pedro Abrunhosa Para os braços da minha mãe Cantado por Pedro Abrunhosa e Camané Cheguei ao fundo da estrada,Duas léguas de nada,Não sei que força me mantém.É tão cinzenta a AlemanhaE a saudade tamanha,E o verão nunca mais vem.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe. Trouxe um pouco de terra,Cheira a pinheiro e a serra,Voam pombasNo beiral.Fiz vinte anos no chão,Na noite de Amsterdão,Comprei amorPelo jornal.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe. Vim em passo de bala,Um diploma na mala,Deixei o meu amor p’ra trás.Faz tanto frio em Paris,Sou já memória e raiz,Ninguém sai donde tem Paz.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe.

Pedro Abrunhosa Quem me leva os meus fantasmas Cantado por Maria Bethânia Aquele era o tempo Em que as mãos se fechavam E nas noites brilhantes as palavras voavam Eu via que o céu me nascia dos dedos E a Ursa Maior eram ferros acesos Marinheiros perdidos em portos distantes Em bares escondidos Em sonhos gigantes E a cidade vazia Da cor do asfalto E alguém me pedia que cantasse mais alto Quem me leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada? Aquele era o tempo Em que as sombras se abriam Em que homens negavam O que outros erguiam E eu bebia da vida em goles pequenos Tropeçava no riso, abraçava venenos De costas voltadas não se vê o futuro Nem o rumo da bala Nem a falha no muro E alguém me gritava Com voz de profeta Que o caminho se faz Entre o alvo e a seta Quem leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada? De que serve ter o mapa Se o fim está traçado De que serve a terra à vista Se o barco está parado De que serve ter a chave Se a porta está aberta De que servem as palavras Se a casa está deserta? Quem me leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada?

Regina Guimarães O mundo a meus pés Cantado por Três Tristes Tigres Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Falta o lume, falha a chama Faço a mala, faço a cama Não me lembro de ter sonhado De ter enganado. Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Faça o favor De entrar sem pedir licença. Não pense no que diz Nem diga o que pensa. Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Falta o lume, falha a chama Faço a mala, faço a cama Não me lembro de ter sonhado De ter enganado. Faça o favor De entrar sem fazer barulho Rien ne va plus Aprenda a jogar seguro. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés.

Márcia A pele que há em mim interpretado por Márcia e JP Simões Quando o dia entardeceu E o teu corpo tocou Num recanto do meu Uma dança acordou E o sol apareceu De gigante ficou Num instante apagou O sereno do céu E a calma a aguardar lugar em mim O desejo a contar segundo o fim. Foi num ar que te deu E o teu canto mudou E o teu corpo no meu Uma trança arrancou E o sangue arrefeceu E o meu pé aterrou Minha voz sussurrou O meu sonho morreu Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada. Dá-me o quarto vazio da minha casa Vou deixar-te no fio da tua fala. Sobre a pele que há em mim Tu não sabes nada. Quando o amor se acabou E o meu corpo esqueceu O caminho onde andou Nos recantos do teu E o luar se apagou E a noite emudeceu O frio fundo do céu Foi descendo e ficou. Mas a mágoa não mora mais em mim Já passou, desgastei Para lá do fim É preciso partir É o preço do amor Para voltar a viver Já nem sinto o sabor A suor e pavor Do teu colo a ferver Do teu sangue de flor Já não quero saber.

Chico Buarque A Banda Interpretado por Chico Buarque O homem sério que contava dinheiro parou O faroleiro que contava vantagem parou A namorada que contava as estrelas Parou para ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada sorriu A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou A moça feia debruçou na janela Pensando que a banda tocava pra ela A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu A lua cheia que vivia escondida surgiu Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor Depois da banda passar Cantando coisas de amor

Alexandre O'Neill Poema de desamor Interpretado por Tiago Bettencourt Desmama-te desanca-te desbunda-te Não se pode morar nos olhos de um gato Beija embainha grunhe geme Não se pode morar nos olhos de um gato Serve-te serve sorve lambe trinca Não se pode morar nos olhos de um gato Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te Não se pode morar nos olhos de um gato Arfa arqueja moleja aleija Não se pode morar nos olhos de um gato Ferra marca dispara enodoa Não se pode morar nos olhos de um gato Faz festa protesta desembesta Não se pode morar nos olhos de um gato Arranha arrepanha apanha espanca Não se pode morar nos olhos de um gato

José Carlos Ary dos Santos Cavalo à solta Interpretado por Fernando Tordo e Jorge Palma Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve, breve instante da loucura Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa Em ti respiro em ti eu provo por ti consigo esta força que de novo em ti persigo em ti percorro cavalo à solta pela margem do teu corpo Minha alegria minha amargura minha coragem de correr contra a ternura. Por isso digo canção castigo amêndoa travo corpo alma amante amigo por isso canto por isso digo alpendre casa cama arca do meu trigo Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura

Sophia de Mello Breyner Andresen Sei que estou só Cantado por Tiago Bettencourt Sei que estou só e gelo entre as folhagens Nenhuma gruta me pode proteger Como um laço deslaça-se o meu ser E nos meus olhos morrem as paisagens. Desligo da minha alma a melodia Que inventei no ar. Tombo das imagens Como um pássaro morto das folhagens Tombando se desfaz na terra fria.

valter hugo mãe Contabilidade Interpretado por Márcia, Camané e Dead Combo venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste o pior amor é este, o que já é feito de ódio também. o pior amor é este, o que já é feito de ódio também, o pior é o amor é este, o que já é feito de ódio também

Adília Lopes A propósito de estrelas Cantado por Arthur Nogueira Não sei se me interessei pelo rapaz por ele se interessar por estrelas se me interessei por estrelas por me interessar pelo rapaz hoje quando penso no rapaz penso em estrelas e quando penso em estrelas penso no rapaz como me parece que me vou ocupar com as estrelas até ao fim dos meus dias parece-me que não vou deixar de me interessar pelo rapaz até ao fim dos meus dias nunca saberei se me interesso por estrelas se me interesso por um rapaz que se interessa por estrelas já não me lembro se vi primeiro as estrelas se vi primeiro o rapaz se quando vi o rapaz vi as estrelas

José Mário Branco Inquietação Interpretado por Camané e Dead Combo A contas com o bem que tu me fazes A contas com o mal por que passei Com tantas guerras que travei Já não sei fazer as pazes São flores aos milhões entre ruínas Meu peito feito campo de batalha Cada alvorada que me ensinas Oiro em pó que o vento espalha Cá dentro inquietação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer Qualquer coisa que eu devia perceber Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Ensinas-me fazer tantas perguntas Na volta das respostas que eu trazia Quantas promessas eu faria Se as cumprisse todas juntas Não largues esta mão no torvelinho Pois falta sempre pouco para chegar Eu não meti o barco ao mar Pra ficar pelo caminho Cá dentro inqueitação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer Qualquer coisa que eu devia perceber Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Cá dentro inquietação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Mas sei É que não sei ainda Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer Qualquer coisa que eu devia resolver Porquê, não sei Mas sei Que essa coisa é que é linda

Carlos Tê A gente não lê Interpretado por Rui Veloso Ai, senhor das furnasQue escuro vai dentro de nósRezar o terço ao fim da tardeSó para espantar a solidãoE rogar a Deus que nos guardeConfiar-lhe o destino na mãoQue adianta saber as marésOs frutos e as sementeirasTratar por tu os ofíciosEntender o suão e os animaisFalar o dialeto da terraConhecer-lhe o corpo pelos sinaisE do resto entender malSoletrar, assinar em cruzNão ver os vultos furtivosQue nos tramam por trás da luzAi, senhor das furnasQue escuro vai dentro de nósA gente morre logo ao nascerCom olhos rasos de lezíriaDe boca em boca passando o saberCom os provérbios que ficam na gíriaDe que nos vale esta purezaSem ler fica-se pederneiraAgita-se a solidão cá, no fundoFica-se sentado à soleiroA ouvir os ruídos do mundoE a entendê-los à nossa maneiraE carregar a superstiçãoDe ser pequeno, ser ninguémE não quebrar a tradiçãoQue dos nossos avós já vêm

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) Ai, Margarida Cantado por Camané (acompanhado por Mário Laginha) Ai, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que farias tu com ela? — Tirava os brincos do prego, Casava c'um homem cego E ia morar para a Estrela. Mas, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que diria tua mãe? — (Ela conhece-me a fundo.) Que há muito parvo no mundo, E que eras parvo também. E, Margarida, Se eu te desse a minha vida No sentido de morrer? — Eu iria ao teu enterro, Mas achava que era um erro Querer amar sem viver. Mas, Margarida, Se este dar-te a minha vida Não fosse senão poesia? — Então, filho, nada feito. Fica tudo sem efeito. Nesta casa não se fia. Comunicado pelo Engenheiro Naval Sr. Álvaro de Campos em estado de inconsciência alcoólica.

Fernando Pessoa Gato que brincas na rua Interpretado por Viviane Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.

Mário de Sá-Carneiro Fim Cantado por Trovante Quando eu morrer batam em latas,Rompam aos saltos e aos pinotes,Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas!Que o meu caixão vá sobre um burroAjaezado à andaluza:A um morto nada se recusa,E eu quero por força ir de burro!...

1 2 Pedro Homem de Mello Povo que lavas no rio Interpretado por Amália Rodrigues (1) acompanhada por Don Byas António Variações (2) Povo que lavas no rioE que talhas com o teu machadoAs tábuas de meu caixãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas do meu caixãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoFui ter à mesa redondaBeber em malga que escondaO beijo de mão em mãoFui ter à mesa redondaBeber em malga que escondaO beijo de mão em mãoEra o vinho que me desteÁgua pura, fruto agresteMas a tua vida nãoO aroma de urze e de lamaDormi com eles na camaTive a mesma condiçãoO aroma de urze e de lamaDormi com eles na camaTive a mesma condiçãoPovo, povo, eu te pertençoDeste-me alturas de incensoMas a tua vida nãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas de meu caixãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas do meu caixãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida não.

Natália Correia Queixa das almas jovens censuradas Cantado por José Mário Branco Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura Dão-nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante Dão-nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino Dão-nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte

Dom Dinis Ai flores, ai flores de verde pinho interpretado por Helena de Alfonso Ai flores, ai flores do verde pinho, se sabedes novas do meu amigo? Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do qui mi há jurado? Ai Deus, e u é? Vós me perguntardes polo voss'amigo, e eu bem vos digo que é sã'e vivo. Ai Deus, e u é? Vós me perguntardes polo voss'amado, e eu bem vos digo que é viv'e são. Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é sã'e vivo e seera vosc'ant'o prazo saído. Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é viv' e são e seera vosc'ant'o prazo passado Ai Deus, e u é?

Daniel Jonas N4V2mix Interpretado por Lisboa Poetry Orchestra Deverias tê-lo feitoCom um fazer realE não pensadoO nunca consumadoO nunca visitadoVisita-se uma vezE de vez o que se fezOu não se fezE agora pensas se o fossesQuem serias tu agoraSeria essa a tua horaOu esta da demoraDe não teres sidoO que deviasQuem há muito te deviasQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadasPassas a mão em conchaPela corcunda da dúvidaPalpas a conta dos anosA conta dos danosNos teus olhos madurosDos teus bons enganosE ante o espelho frio e fundo(espelho mau espelho mau)Que te devolve sorrisos durosDuas uvas te olhamO nunca vindimadoOs ossos transparentesA tua longa perguntaQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadasE nisso moras sem perdãoE tu em todo o ladoSouvenir de tudo, avenir de nadaDe todos os mundosDe mundo nenhumE tu porém nadaNada que te ouçaNada que te hajaNada que te valhaLenta estrada de nadaQue te leva a lado algumTransitória e demoradaQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadas

Capicua Luta Interpretado por Capicua e Aline Frazão Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Tu conheces as minhas fases todas Como a lua E desconheces que a vida muda Até a tua lupa E que eu não sou a única que está diferente E não há uma só critica ou vitima em julgamento Eis o reconhecimento vamos começar de novo Reconhecermos os erros é conhecermos o outro Faz o que é suposto, recomeço é necessário Seco as lagrimas do rosto em mais um aniversario E confio que por muito que isto tudo seja um erro Tem de haver a recompensa para se ser tao ingenuo E eu juro, finjo que páro Digo que saio mas não vou Eu calo e quando falo Eu nunca abro o jogo todo Eu fico achando que arco Mas depois mato o que restou Não queimo então Não chega porque amor para mim é fogo! Insisto, eu não desisto ainda resisto a mais um teste Se não é isto, não existe porque amor tem de ser este E eu deitava fogo à casa com palavras se pudesse Eu punha o pe na estrada e não voltava mais a ver-te Eu rezava se soubesse ou se desse algum resultado E se houvesse alguma prece que mudasse o meu passado Pra não te ter tatuado a ferro quente no colo Com a frieza de que quem mata com uma lupa ao sol Pra não te ter sempre ao lado, em fantasma quando não estás Sentindo que olhar para a frente é voltar andar para trás Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Juro, finjo que páro Digo que saio mas não vou Eu calo e quando falo Eu nunca abro o jogo todo Eu fico achando que arco Mas depois mato o que restou Não queimo então Não chega porque amor para mim é fogo

José Craveirinha Quero ser tambor Interpretado por Narf (Francisco Xavier Pérez Vásquez) Tambor está velho de gritar Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos. Nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. Nem nada! Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. Oh velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia. Só tambor ecoando como a canção da força e da vida Só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque! Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor só tambor!

Sophia de Mello Breyner Andresen Cantata da Paz Interpretado por Francisco Fanhais Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Relatórios da fome O caminho da injustiça A linguagem do terror A bomba de Hiroshima Vergonha de nós todos Reduziu a cinzas A carne das crianças DÁfrica e Vietname Sobe a lamentação Dos povos destruídos Dos povos destroçados Nada pode apagar O concerto dos gritos O nosso tempo é Pecado organizado.

Mário de Sá-Carneiro O outro Interpretado por Adriana Cacanhotto Eu não sou eu nem sou o outro,Sou qualquer coisa de intermédio:Pilar da ponte de tédioQue vai de mim para o Outro.

Adriana Calcanhotto Fico assim sem você Interpretado por Adriana Cacanhotto Avião sem asa Fogueira sem brasa Sou eu assim, sem você Futebol sem bola Piu-Piu sem Frajola Sou eu assim, sem você Por que é que tem que ser assim? Se o meu desejo não tem fim Eu te quero a todo instante Nem mil auto-falantes Vão poder falar por mim Amor sem beijinho Bochecha sem Claudinho Sou eu assim sem você Circo sem palhaço namoro sem amasso Sou eu assim sem você Tô louca pra te ver chegar Tô louca pra te ter nas mãos Deitar no teu abraço Retomar o pedaço Que falta no meu coração Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo Por quê? Por quê? Neném sem chupeta Romeu sem Julieta Sou eu assim sem você Carro sem estrada Queijo sem goiabada Sou eu assim sem você Por que é que tem que ser assim Se o meu desejo não tem fim Eu te quero a todo instante Nem mil alto-falantes vão poder falar por mim Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo

Vasco Graça Moura Talvez Interpretado por Carminho Talvez digas um dia o que me queres, Talvez não queiras afinal dizê-lo, Talvez passes a mão no meu cabelo, Talvez eu pense em ti talvez me esperes. Talvez, sendo isto assim, fosse melhor Falhar-se o nosso encontro por um triz Talvez não me afagasses como eu quis, Talvez não nos soubéssemos de cor. Mas não sei bem, respostas não mas dês. Vivo só de murmúrios repetidos, De enganos de alma e fome dos sentidos, Talvez seja cruel, talvez, talvez. Se nada dás, porém, nada te dou Neste vaivém que sempre nos sustenta, E se a própria saudade nos inventa, Não sei talvez quem és mas sei quem sou. Se nada dás, porém, nada te dou Neste vaivém que sempre nos sustenta, E se a própria saudade nos inventa, Não sei talvez quem és mas sei quem sou.

Carlos Drumond de Andrade As sem razões do amor interpretado por Tunai e Milton Nascimento Eu te amo porque te amo.Não precisas ser amante,e nem sempre sabes sê-lo.Eu te amo porque te amo.Amor é estado de graçae com amor não se paga.Amor é dado de graça,é semeado no vento,na cachoeira, no eclipse.Amor foge a dicionáriose a regulamentos vários.Eu te amo porque não amobastante ou demais a mim.Porque amor não se troca,não se conjuga nem se ama.Porque amor é amor a nada,feliz e forte em si mesmo.Amor é primo da morte,e da morte vencedor,por mais que o matem (e matam)a cada instante de amor.

Manuel Alegre Trova do vento que passa Interpretado por Adriano Correia de Oliveira Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste. Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de sevidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.

António Ramos Rosa Não posso adiar o amor interpretado por Linha da Frente Não posso adiar o amor para outro séculonão possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o ódio estale e crepite e ardasob as montanhas cinzentase montanhas cinzentasNão posso adiar este braçoque é uma arma de dois gumes amor e ódioNão posso adiarainda que a noite pese séculos sobre as costase a aurora indecisa demorenão posso adiar para outro século a minha vidanem o meu amornem o meu grito de libertaçãoNão posso adiar o coração.

Almeida Garrett Pescador da barca bela interpretado por Teresa Silva Carvalho Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela. Que é tão bela, Oh pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador! Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Oh pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela, Só de vê-la, Oh pescador. Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela, Foge dela Oh pescador!

José Eduardo Agualusa Na grande casa branca interpretado por João Afonso Na grande casa branca onde eu vivi E fui feliz para sempre Tudo persiste idêntico e perpétuo É a mesma ainda a luz crepuscular Dos quartos o quieto momento E nas largas varandas abertas sobre o mar É o mesmo ainda o perfume do vento Em algum lado a casa há-de estar Eu, é que já não estou Eu é que sou as ruínas dela A casa está vazia, ninguém lá mora Salvo aranhas e capins Vê lá bem, a casa perdeu-se de nós E todavia Nunca ela foi tão nossa como agora

Mia Couto Silvestre e o idioma interpretado por João Afonso Silvestre quer saber porque razão eu estrago o português escrevendo palavras que nem há. Não é a pessoa que escolhe a palavra. É o inverso. Isso eu podia ter respondido. Mas não. O tudo que disse foi: é um crime passional, Silvestre. É que eu amo tanto a Vida que ela não tem cabimento em nenhum idioma. Silvestre sorriu. Afinal, também ele já cometera o idêntico crime: todas as mulheres que amara ele as rebatizara, vezes sem fim. Amor se parece com a Vida: ambos nascem na sede da palavra, ambos morrem na palavra bebida.

Luís de Camões Endeixas interpretado por Ana Moura Pois meus olhos não deixam de chorar Tristezas que não cansam de cansar-me Pois não abranda o fogo em que abrasar-me Pode quem eu jamais pude abrandar Não canse o cego amor de me guiar A parte donde não saiba tornar-me Nem deixe o mundo todo de escutar-me Enquanto me a voz fraca não deixar E se em montes, em rios, ou em vales Piedade mora ou dentro mora amor Em feras, aves, plantas, pedras, águas Ouçam a longa história de meus males E curem sua dor com minha dor Que grandes mágoas podem curar mágoas.

Eugénio de Andrade Adeus Interpretado por Simone de Oliveira Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, no tempo em que o teu corpo era um aquário, no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada. E, no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti Não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.

António Variações Estou além Interpretado por António Variações Não consigo dominarEste estado de ansiedadeA pressa de chegarP'ra não chegar tardeNão sei do que é que eu fujoSerá desta solidãoMas porque é que eu recusoQuem quer dar-me a mãoVou continuar a procurarA quem eu me quero darPorque até aqui eu sóQuero quem quem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca viEsta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perderTenho pressa de sairQuero sentir ao chegarVontade de partirP'ra outro lugarVou continuar a procurarO meu mundoO meu lugarPorque até aqui eu sóEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouEsta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perderTenho pressa de sairQuero sentir ao chegarVontade de partirP'ra outro lugarVou continuar a procurarA minha formaO meu lugarPorque até aqui eu sóEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu nao vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vou

Fausto Bordalo Dias O barco vai de saída Cantado por Fausto (Bordalo Dias) O barco vai de saídaAdeus ó cais de alfamaSe agora vou de partidaLevo-te comigo ó cana verdeLembra-te de mim ó meu amorLembra-te de mim nesta aventuraP'ra lá da loucuraP'ra lá do EquadorAh! mas que ingrata ventura bem me posso queixarDa pátria a pouca farturaCheia de mágoas ai quebra marCom tantos perigos ai minha vidaCom tantos medos e sobressaltosQue eu já vou aos saltosQue eu vou de fugidaSem contar essa história escondidaPor servir de criado a essa senhoraServiu-se ela também tão sedutoraFoi pecadoFoi pecadoE foi pecado sim senhorQue vida boa era a de LisboaGingão de roda batidaCorsário sem cruzadoAo som do baile mandadoEm terras de pimenta e maravilhaCom sonhos de prata e fantasiaCom sonhos da cor do arco-írisDesvairas se os viresDesvairas magiaJá tenho a vela enfunadaMarrano sem vergonhaJudeu sem coisa sem fronhaVou de viagem ai que largadaSó vejo cores ai que alegriaSó vejo piratas e tesourosSão pratas, são ourosSão noites, são diasVou no espantoso trono das águasVou no tremendo assopro dos ventosVou por cima dos meus pensamentosArrepiaArrepiaE arrepia sim senhorQue vida boa era a de LisboaO mar das águas ardendoO delírio dos céusA fúria do barlaventoArreia a vela e vai marujo ao lemeVira o barco e cai marujo ao marVira o barco na curva da morteOlha a minha sorteOlha o meu azarE depois do barco viradoGrandes urros e gritosNa salvação dos aflitosEsfola, mata, agarraAi quem me ajudaReza, implora, escapaAi que pagodeReza tremem heróis e eunucosSão mouros, são turcosSão mouros acodeAquilo é uma tempestade medonhaAquilo vai p'ra lá do que é eternoAquilo era o retrato do infernoVai ao fundoVai ao fundoE vai ao fundo sim senhorQue vida boa era a de LisboaQue vida boa era a de Lisboa

Francisco de Sá de Miranda Comigo me desavim Interpretado por D'Alma Comigo me desavim,Sou posto em todo perigo;Não posso viver comigoNem posso fugir de mim.Com dor da gente fugia,Antes que esta assi crecesse:Agora já fugiriaDe mim, se de mim pudesse.Que meo espero ou que fimDo vão trabalho que sigo,Pois que trago a mim comigoTamanho imigo de mim?

José Luís Peixoto não te pergunto onde chegas? Interpretado por Rui Moura não te pergunto de onde chegas?,porque sei para onde vais.hoje é a hora exacta em que até o ventoaté os pássaros desistem.e a noite a teus pés é um instantee um destino.não te pergunto onde está o teu rosto,tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,onde está o teu rosto?nem te peço que incendeies o teu nomenuma nuvem nocturna,nem te procuro.és tu que me encontras.ficas no rio que passa,nada de um tempo que não existe,nem correntes, nem pedra, nem musgo.nem silêncio.

José Saramago Alegria Interpretado por Teresa Salgueiro Já ouço gritos ao longe Já diz a voz do amor A alegria do corpo O esquecimento da dor Já os ventos recolheram Já o verão se nos oferece Quantos frutos quantas fontes Mais o sol que nos aquece Já colho jasmins e nardos Já tenho colares de rosas E danço no meio da estrada As danças prodigiosas Já os sorrisos se dão Já se dão as voltas todas Ó certeza das certezas Ó alegria das bodas

Almada Negreiros Rondel do Alentejo Interpretado por Ricardo Ribeiro Em minarete mate bate leve verde neve minuete de luar. Meia-noite do Segredo no penedo duma noite de luar. Olhos caros de Morgada enfeitava com preparos de luar. Rompem fogo pandeiretas morenitas, bailam tetas e bonitas, bailam chitas e jaquetas, são de fitas desafogo de luar. Voa o xaile andorinha pelo baile, e a vida doentinha e a ermida ao luar. Laçarote escarlate de cocote alegria de Maria la-ri-rate em folia de luar. Giram pés giram passos girassóis os bonés, os braços estes dois iram laços o luar. colete esta virgem endoidece como o S do foguete em vertigem de luar. Em minarete mate bate leve verde neve minuete de luar.

Vinicius de Moraes Eu sei que vou te amar Interpretado por Ana Carolina Eu sei que vou te amarPor toda a minha vida eu vou te amarEm cada despedida eu vou te amarDesesperadamenteEu sei que vou te amarE cada verso meu seráPra te dizer que eu sei que vou te amarPor toda minha vidaEu sei que vou chorarA cada ausência tua eu vou chorarMas cada volta tua há de apagarO que esta ausência tua me causouEu sei que vou sofrerA eterna desventura de viverA espera de viver ao lado teuPor toda a minha vida

Mário Lúcio Sousa Ilha de Santiago Interpretado por Mayra Andrade Ilha de Santiago Tem corpinho de algodón Saia de chita cu cordón Um par de brinco roda pión Na ilha de Santiago Tem nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gómi cu Zezé Nhu Raúl lá di fundo Ruber da Barca Na Ilha de Santiago Tem Caetaninho, tem Codé, Nhu Arique cu Ano Nobo Nha Bibinha lá di fundo Curral de Baxo Na Ilha de Santiago Tem Séma Lópi, tem Catchás, Djirga, Bilocas, Ney, Ntóni Dente d’Oro lá di fundo San Dimingo

1 2 Viriato da Cruz Namoro Interpretado por Toty Sa'Med (1) e Sérgio Godinho (2) Mandei-lhe uma carta em papel perfumadoe com a letra bonita eu disse ela tinhaum sorrir luminoso tão quente e gaiatocomo o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridasespalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas.sua pele macia - era sumaúma...Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosastão rijo e tão doce - como o maboque...Seu seios laranjas - laranjas do Logeseus dentes... - marfim...Mandei-lhe uma cartae ela disse que não. Mandei-lhe um cartãoque o Maninjo tipografou:"Por ti sofre o meu coração"Num canto - SIM, noutro canto - NÃOE ela o canto do NÃO dobrou. Mandei-lhe um recado pela Zefa do Setepedindo rogando de joelhos no chãopela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,me desse a ventura do seu namoro...E ela disse que não. Levei à avó Chica, quimbanda de famaa areia da marca que o seu pé deixoupara que fizesse um feitiço forte e seguroque nela nascesse um amor como o meu...E o feitiço falhou. Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,paguei-lhe doces na calçada da Missão,ficamos num banco do largo da Estátua,afaguei-lhe as mãos...falei-lhe de amor... e ela disse que não. Andei barbado, sujo, e descalço,como um mona-ngamba.Procuraram por mim" - Não viu...(ai, não viu...?) Não viu Benjamim?"E perdido me deram no morro da Samba.E para me distrairlevaram-me ao baile do sô Januáriomas ela lá estava num canto a rircontando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário Tocaram uma rumba dancei com elae num passo maluco voamos na salaqual uma estrela riscando o céu!E a malta gritou: "Aí Benjamim!"Olhei-a nos olhos - sorriu para mimpedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

José Luís Tinoco No teu poema Interpretado por Carlos do Carmo No teu poemaExiste um verso em branco e sem medidaUm corpo que respira, um céu abertoJanela debruçada para a vidaNo teu poema existe a dor calada lá no fundoO passo da coragem em casa escuraE, aberta, uma varanda para o mundoExiste a noiteO riso e a voz refeita à luz do diaA festa da Senhora da AgoniaE o cansaçoDo corpo que adormece em cama friaExiste um rioA sina de quem nasce fraco ou forteO risco, a raiva e a luta de quem caiOu que resisteQue vence ou adormece antes da morteNo teu poemaExiste o grito e o eco da metralhaA dor que sei de cor mas não recitoE os sonos inquietos de quem falhaNo teu poemaExiste um canto, chão alentejanoA rua e o pregão de uma varinaE um barco assoprado a todo o panoExiste um rioO canto em vozes juntas, vozes certasCanção de uma só letraE um só destino a embarcarNo cais da nova nau das descobertasExiste um rioA sina de quem nasce fraco ou forteO risco, a raiva e a luta de quem caiOu que resisteQue vence ou adormece antes da morteNo teu poemaExiste a esperança acesa atrás do muroExiste tudo o mais que ainda escapaE um verso em branco à espera de futuro

Lídia Jorge Fado do retorno interpretado por Mísia Amor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaVoltaste, já voltasteJá entras como sempreAbrandas os teus passosE páras no tapeteEntão que uma luz ardaE assim o fogo aqueçaOs dedos bem unidosMovidos pela pressaAmor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaVoltaste, já volteiTambém cheia de pressaDe dar-te, na paredeO beijo que me peçasEntão que a sombra agiteE assim a imagem façaOs rostos de nós doisTocados pela graça.Amor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaAmor, o que seráMais certo que o futuroSe nele é para habitarA escolha do mais puroJá fuma o nosso fumoJá sobra a nossa mantaJá veio o nosso sonoFechar-nos a gargantaEntão que os cílios olhemE assim a casa sejaA árvore do OutonoCoberta de cereja.

Carlos Oliveira Carta a Ângela interpretado por Carlos do Carmo Para ti, meu amor, é cada sonho de todas as palavras que escrever, cada imagem de luz e de futuro, cada dia dos dias que viver. Os abismos das coisas, quem os nega, se em nós abertos inda em nós persistem? Quantas vezes os versos que te dou na água dos teus olhos é que existem! Quantas vezes chorando te alcancei e em lágrimas de sombra nos perdemos! As mesmas que contigo regressei ao ritmo da vida que escolhemos! Mais humana da terra dos caminhos e mais certa, dos erros cometidos, foste de novo, e sempre, a mão da esperança nos meus versos errantes e perdidos. Transpondo os versos vieste à minha vida e um rio abriu-se onde era areia e dor. Porque chegaste à hora prometida aqui te deixo tudo, meu amor!

Nuno Júdice Lisboa, Oxalá Interpretado por Carlos do Carmo e Carminho Tal qual esta Lisboa, roupa posta à janelaTal qual esta Lisboa, roxa jacarandáSei de uma outra Lisboa, de avental e chinelaAi Lisboa fadista, de Alfama e oxaláSei de uma outra Lisboa, de avental e chinelaAi Lisboa fadista, de Alfama e oxaláLisboa lisboeta, da noite mais escuraDe ruas feitas sombra, de noites e vielasPisa o chão, pisa a pedra, pisa a vida que é duraLisboa tão sozinha, de becos e ruelasPisa o chão, pisa a pedra, pisa a vida que é duraLisboa tão sozinha, de becos e ruelasMas o rosto que espreita, por detrás da cortinaÉ o rosto d'outrora feito amor feito agoraRiso de maré viva numa boca ladinaRiso de maré cheia num beijo que demoraRiso de maré viva numa boca ladinaRiso de maré cheia num beijo que demoraE neste fado deixo esquecido aqui ficarLisboa sem destino, que o fado fez cantarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegar

António Castro Alves O navio negreiro Interpretado por Caetano Veloso e Maria Bethânia 'Stamos em pleno mar Era um sonho dantesco... o tombadilho, Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa dos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais! Qual num sonho dantesco as sombras voam... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanaz!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são?... Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa musa, Musa libérrima, audaz! São os filhos do deserto Onde a terra esposa a luz. Onde voa em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados, Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão... Homens simples, fortes, bravos... Hoje míseros escravos Sem ar, sem luz, sem razão... São mulheres desgraçadas Como Agar o foi também, Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos Filhos e algemas nos braços, N'alma lágrimas e fel. Como Agar sofrendo tanto Que nem o leite do pranto Têm que dar para Ismael... Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana Quando a virgem na cabana Cisma das noites nos véus... ...Adeus! ó choça do monte!... ...Adeus! palmeiras da fonte!... ...Adeus! amores... adeus!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão? Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... E existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?!... Silêncio!... Musa! chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no seu pranto... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga, Como um íris no pélago profundo!... ...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares!

Luís de Camões Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades Interpretado por José Mário Branco Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. (E se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve), as saudades. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e, enfim, converte em choro o doce canto. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança)

Vasco Graça Moura Até ao fim Interpretado por Kátia Guerreiro Intensamente, amor, intensamente Ponho na minha voz esta saudade Que é feita de futuro no presente E na ilusão é feita de verdade Intensamente, amor, intensamente Desesperando, amor, desesperando Por mesmo assim eu não te dizer tudo Mesmo ao lembrar-me de onde, e como, e quando Teu coração mudou, mas eu não mudo Desesperando, amor, desesperando Até ao fim, amor, até ao fim Do mundo, tal e qual pedro e Inês Aqui te espero, aqui me tens a mim Neste mísero estado em que me vês Até ao fim, amor, até ao fim

Fernando Pessoa Há uma música do povo Interpretado por Mariza Há uma música do povo, Nem sei dizer se é um fado — Que ouvindo-a há um chiste novo No ser que tenho guardado... Ouvindo-a sou quem seria Se desejar fosse ser... É uma simples melodia Das que se aprendem a viver... E ouço-a embalado e sozinho... É essa mesma que eu quis... Perdi a fé e o caminho... Quem não fui é que é feliz. Mas é tão consoladora A vaga e triste canção... Que a minha alma já não chora Nem eu tenho coração... Se uma emoção estrangeira, Um erro de sonho ido... Canto de qualquer maneira E acaba com um sentido!

Fernando Pessoa Vaga, no azul amplo solta Interpretado por Patxi Andión Vaga, no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando. O meu passado não volta. Não é o que estou chorando. O que choro é diferente. Entra mais na alma da alma. Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma, E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece, Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece. Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade. Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.

Pedro Tamen Verdes anos Interpretado por Dulce Pontes Era o amor que chegava e partia: estarmos os dois era um calor que arrefecia sem antes nem depois… Era um segredo sem ninguém para ouvir: eram enganos e era um medo, a morte a rir nos nossos verdes anos... Teus olhos não eram paz, não eram consolação. O amor que o tempo traz o tempo o leva na mão. Foi o tempo que secou a flor que ainda não era. Como o Outono chegou no lugar da Primavera! No nosso sangue corria um vento de sermos sós. Nascia a noite e era dia, e o dia acabava em nós… O que em nós mal começava não teve nome de vida: era um beijo que se dava numa boca já perdida.

1 2 Eugénio de Andrade Não canto porque sonho Interpretado por Noiserv (1) e Fausto e Zeca Afonso (2) Não canto porque sonho. Canto porque és real. Canto o teu olhar maduro, teu sorriso puro, a tua graça animal. Canto porque sou homem. Se não cantasse seria mesmo bicho sadio embriagado na alegria da tua vinha sem vinho. Canto porque o amor apetece. Porque o feno amadurece nos teus braços deslumbrados. Porque o meu corpo estremece ao vê-los nus e suados.

1 2 Luís de Camões Verdes são os campos Interpretado por Úxia (1) e José Afonso (2) Verdes são os campos,Da cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Verdes são os campos,Da cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.

Maria Teresa Horta Segredo Interpretado por Cristina Branco Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça nem que corro os cortinados para uma sombra mais espessa Deixa que feche o anel em redor do teu pescoço com as minhas longas pernas e a sombra do meu poço Não contes do meu novelo nem da roca de fiar nem o que faço com eles a fim de te ouvir gritar

Manuel Rui Monteiro Os meninos de Huambo Interpretado por Ruy Mingas Com fios feitos de lágrimas passadasOs meninos de Huambo fazem alegriaConstroem sonhos com os mais velhos de mãos dadasE no céu descobrem estrelas de magiaCom os lábios de dizer nova poesiaSoletram as estrelas como letrasE vão juntando no céu como pedrinhasEstrelas letras para fazer novas palavrasOs meninos à volta da fogueiraVão aprender coisas de sonho e de verdadeVão aprender como se ganha uma bandeiraVão saber o que custou a liberdadeCom os sorrisos mais lindos do planaltoFazem continhas engraçadas de somarSomam beijos com flores e com suorE subtraem manhã cedo por luarDividem a chuva miudinha pelo milhoMultiplicam o vento pelo marSoltam ao céu as estrelas já escritasConstelações que brilham sempre sem pararOs meninos à volta da fogueiraVão aprender coisas de sonho e de verdadeVão aprender como se ganha uma bandeiraVão saber o que custou a liberdadePalavras sempre novas, sempre novasPalavras deste tempo sempre novoPorque os meninos inventaram coisas novasE até já dizem que as estrelas são do povoAssim contentes à voltinha da fogueiraJuntam palavras deste tempo sempre novoPorque os meninos inventaram coisas novasE até já dizem que as estrelas são do povo

Manuel Cruz Ouvi dizer Interpretado por Ornatos Violeta Ouvi dizer que o nosso amor acabou pois eu não tive a noção do seu fim pelo que eu já tentei eu não vou vê-lo em mim se eu não tive a noção de ver nascer um homem e ao que eu vejo tudo foi para ti uma estúpida canção que só eu ouvi e eu fiquei com tanto para dar e agora não vais achar nada bem que eu pague a conta em raiva e pudesse eu pagar de outra forma ouvi dizer que o mundo acaba amanhã e eu tinha tantos planos para depois fui eu quem virou as páginas na pressa de chegar até nós sem tirar das palavras seu cruel sentido sobre a razão estar cega resta-me apenas uma razão um dia vais ser tu e um homem como tu como eu não fui um dia vou-te ouvir dizer e pudesse eu pagar de outra forma sei que um dia vais dizer e pudesse eu pagar de outra forma a cidade está deserta e alguém escreveu o teu nome em toda a parte nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas em todo o lado essa palavra repetida ao expoente da loucura ora amarga, ora doce para nos lembrar que o amor é uma doença quando nele julgamos ver a nossa cura

Maria do Rosário Pedreira Flagrante Interpretado por António Zambujo Bem te avisei, meu amor,Que não podia dar certoE era coisa de evitarComo eu, devias supor,Que, com gente ali tão perto,Alguém fosse repararMas não: fizeste beicinhoE como numa promessaFicaste nua para mimPedaço de mau caminhoOnde é que eu tinha a cabeçaQuando te disse que sim?Embora tenhas juradoDiscreta permanecerJá que não estávamos sósOuvindo na sala ao ladoTeus gemidos de prazerVieram saber de nósNem dei p'lo que aconteceuMas, mais veloz e mais esperta,Só te viram de raspãoVergonha passei-a eu:Diante da porta abertaEstava de calças na mão

António Lobo Antunes Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto Interpretado por Naifa Eu que me comovoPor tudo e por nadaDeixei-te paradaNa berma da estradaUsei o teu corpoPaguei o teu preçoEsqueci o teu nomeLimpei-me com o lençoOlhei-te a cinturaDe pé no alcatrãoLevantei-te as saiasDeitei-te no bancoNum bosque de faiasDe mala na mãoNem sequer falasteNem sequer beijasteNem sequer gemeste,Mordeste, abraçasteQuinhentos escudosFoi o que dissesteTinhas quinze anosDezasseis, dezasseteCheiravas a matoÀ sopa dos pobresA infância sem quartoA suor, a chicleteSaíste do carroAlisando a blusaEspiei da janelaRosto de aguarelaCoxa em semifusaSoltei o travãoVoltei para casaDe chaves na mãoSobrancelha em asaDisse: fiz serãoAo filho e à mulherRepeti a frutaAcabei a ceiaLarguei o talherEstendi-me na camaDe ouvido à escutaE perna cruzadaQue de olhos em chamaSó tinha na ideiaTeu corpo paradoNa berma da estradaEu que me comovoPor tudo e por nada

Vinicius de Moraes A casa Interpretado por Vinicius de Moraes Era uma casaMuito engraçadaNão tinha tetoNão tinha nadaNinguém podiaEntrar nela nãoPorque na casaNão tinha chãoNinguém podiaDormir na redePorque a casaNão tinha paredeNinguém podiaFazer pipiPorque penicoNão tinha aliMas era feitaCom muito esmeroNa Rua dos BobosNúmero Zero.

Cecília Meireles Motivo Interpretado por Fagner Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.Irmão das coisas fugidias,não sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.Se desmorono ou se edifico,se permaneço ou me desfaço,- não sei, não sei. Não sei se fico> ou passo.Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo:- mais nada.

Miguel Torga Súplica Interpretado por Vitor Blue Agora que o silêncio é um mar sem ondas,E que nele posso navegar sem rumo,Não respondasÀs urgentes perguntasQue te fiz.Deixa-me ser felizAssim,Já tão longe de ti, como de mim.Perde-se a vida, a desejá-la tanto.Só soubemos sofrer, enquantoO nosso amorDurou.Mas o tempo passou,Há calmaria...Não perturbes a paz que me foi dada.Ouvir de novo a tua voz, seriaMatar a sede com água salgada.

Matilde Rosa Araújo Cantar para um pastor Interpretado por Raquel Tavares Acorda meu sangue preso Acorda meu sangue mudo Se te amo não te amo E meu cantar não diz tudo, Se te amo não te amo E meu cantar não diz tudo. Meu olhar da madrugada Pastor da noite comprida Luz no peito vigiada Liberdade consentida, Luz no peito vigiada Liberdade consentida. Acorda meu sangue preso Rasga o ventre do meu dia Se te amo não te amo Meu pastor de alegria, Se te amo não te amo Meu pastor de alegria. Meu pastor de alegria Meu olhar de madrugada Se eu piso campos verdes É sempre noite na estrada, Se eu piso campos verdes É sempre noite na estrada. Se te amo não te amo Meu olhar da madrugada Trago uma pomba de espanto Nesta garganta velada, Trago uma pomba de espanto Nesta garganta velada.

David Mourão_Ferreira Soneto do amor difícil Cantado por Tiago Bettencourt A praia abandonada recomeça logo que o mar se vai, a desejá-lo: é como o nosso amor, somente embalo enquanto não é mais que uma promessa... Mas se na praia a onda se espedaça, há logo a nostalgia duma flor que ali devia estar para compor a vaga em seu rumor de fim de raça. Bruscos e doloridos, refulgimos no silêncio da morte que nos tolhe, como entre o mar e a praia um longo molhe de súbito surgido à flor dos limos. E deste amor difícil só nasceu desencanto na curva do teu céu.

David Mourão_Ferreira Começar de novo Cantado por Simone de Oliveira Esta gaivota que vaiseguindo o navio.Este céu que despreza a morte.Esta luz, este rio.Tudo num sonho que apenasfoi desenhadopara eu aprender de novoa viver a teu lado.Vento no rostoe tanto sol nos meus braçostanto sol que depois te cercaa travar os teus passos.Tudo num sonhoque foi assim desenhadopara tu começares de novoa viver a meu lado.Dentro de nós, temos nósde seguir a liçãodesta luz que a manhãnos oferece novamente.Dentro de nós vai o mundotornar-se cançãoé preciso que tudocomece novamente.Tudo num sonhoque apenas foi desenhadopara eu aprender de novoa viver a teu lado.Tudo num sonhoque foi assim desenhadopara tu começares de novoa viver a meu lado.

Eugénio de Andrade Não é verdade Interpretado por Simone de Oliveira Cai, como antigamente, das estrelasum frio que se espalha na cidade.Não é noite nem dia, é o tempo ardenteda memória das coisas sem idade. O que sonhei cabe nas tuas mãosgastas a tecer melancolia:um país crescendo em liberdade,entre medas de trigo e de alegria. Porém a morte passeia nos quartos,ronda as esquinas, entra nos navios,o seu olhar é verde, o seu vestido branco,cheiram a cinza os seus dedos frios. Entre um céu sem cor e montes de carvãoo ardor das estações cai apodrecido;os mastros e as casas escorrem sombra,só o sangue brilha endurecido. Não é verdade tanta loja de perfumes,não é verdade tanta rosa decepada,tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,tanto relógio, tanta pomba assassinada. Não quero para mim tanto veneno,tanta madrugada varrida pelo gelo,nem olhos pintados onde morre o dia,nem beijos de lágrimas no meu cabelo. Amanhece.Um galo risca o silênciodesenhando o teu rosto nos telhados.Eu falo do jardim onde começaum dia claro de amantes enlaçados.

Clarice Linspector Que o Deus venha Interpretado por Cássia Eller Sou inquieta, áspera e desesperançadaEmbora amor dentro de mim eu tenhaSó que eu não sei usar amorÀs vezes arranha feito farpaSe tanto amor dentro de mim eu tenhoE no entanto eu continuo inquietaÉ que eu preciso que o Deus venhaAntes que seja tarde demaisCorro perigo como toda pessoa que viveE a única coisa que me espera é exatamente o inesperadoMas eu sei que vou ter paz antes da morteQue vou experimentar um dia o delicado da vidaVou aprender como se come e se vive o gosto da comida

Manuel Bandeira Azulão Interpretado por Nara Leão Vai AzulãoAzulão companheiro vaiVai ver minha ingrataDiz que sem elaO sertão não é mais sertãoAh, voa, Azulão, vai contarcompanheiro vai…

Herberto Helder Poemas Canhotos Interpretado por Carlos do Carmo Estes poemas que chegam Do meio da escuridão De que ficamos incertos Se têm autor ou não Poemas às vezes perto Da nossa própria razão Que nos podem fazer ver O dentro da nossa morte As forças fora de nós E a matéria da voz Fabricada no mais fundo De outro silêncio do mundo Que serão eles senão Uma imensidão de voz Que vem na terra calada Do lado da solidão Estes poemas que avançam No meio da escuridão Até não serem mais nada Que lápis, papel e mão E esta tremenda atenção Este nada Uma cegueira que apaga A luz por trás de outra mão Tudo o que acende e me apaga Alumiação de mais nada Que a mão parada Alumiação então De que esta mão me conduz Por descaminhos de luz Ao centro da escuridão Que é fácil a rima em Ão Difícil é ver-se a luz Rima ou não rima com a mão.

Luís de Camões Endechas a Bárbara escrava interpretado por José Afonso Aquela cativa Que me tem cativo, Porque nela vivo Já não quer que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que pera meus olhos Fosse mais fermosa. Nem no campo flores, Nem no céu estrelas Me parecem belas Como os meus amores. Rosto singular, Olhos sossegados, Pretos e cansados, Mas não de matar. U~a graça viva, Que neles lhe mora, Pera ser senhora De quem é cativa. Pretos os cabelos, Onde o povo vão Perde opinião Que os louros são belos. Pretidão de Amor, Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a cor. Leda mansidão, Que o siso acompanha; Bem parece estranha, Mas bárbara não. Presença serena Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Toda a minha pena. Esta é a cativa Que me tem cativo; E. pois nela vivo, É força que viva.

Pedro Barroso Poema do lavrador de palavras aos políticos Interpretado por Pedro Barroso não me perguntem coisas daquelas que eu não creianão me perguntem coisas daquelas que não seiremeto para os senhores as decisões do mundotais como governar, fazer decretos leino meio da tempestade no meio das sapiênciasse poeta nasci, poeta morrereinem homem de gravata nem homem de ciênciasapenas de mim próprio, e pouco, serei reidas decisões do mundo lerei o que entenderque dentro de mim mesmo às vezes nasce um rioe é esse desafio que nunca hei-de esquecere é essa a diferença que faz o meu feitiomas digam por favor de onde nasce o solque eu basta-me o calor - para lá me voltareie saibam já agora que se eu lavrar a terrame bastará que chova que o resto eu o fareie digam por favor se o céu inda nos cobree bastará o azul que em ave me torneimantenham com cuidado as árvores e estradaspr´a gente poder ver, p´ra gente circularque eu basta-me saúde e o sonho tão distantee a boca perturbante que tu me sabes dare a festa de viver e o gozo e a paisagemdesta curva do Tejo, soprando a brisa levee na tranquilidade assim desta viagemparar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breveque eu voo por toda a parte mas noutro horizontee vivo as coisas simples e rio-me da ambiçãoe ao fim de tanto ver, escolherei um montede onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarteda ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,da ânsia da importância, da ânsia de mandare digam por favor de onde nasce o solque eu basta-me o calor - para lá me voltareie saibam já agora que se eu lavrar a terrame bastará que chova que o resto eu o fareie digam por favor se o céu inda nos cobree bastará o azul que em ave me tornei

Vasco Lima Couto Ùltimo poema interpretado por Ricardo Ribeiro Então até amanhã meu dia triste Na taverna da noite do meu fado Onde canto o amor que não existe Neste meu amanhã abandonado Grito dentro de mim a noite e o dia Nesta hora do sonho mais profundo Que regressa na voz da despedida Com que te vejo por estar no mundo Nas palavras amadas que perdi O ontem que tu foste já me foge Então até amanhã, disseste, e eu vi Que o amanhã não chega ao ontem de hoje

José do Valle Figueiredo Requiem por Jan Palach interpretado pelo Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra Arde o coração de Praga. Arde o corpo de Jan Palach. Podemos dizer que o Rei Venceslau, montado em seu cavalo, também viu crescer o fogo em que arde o coração de Praga. João Huss, queimando o seu corpo, também arde na Praça de Praga. E os cavaleiros da Boémia, o povo e os grão-Senhores, os operários de Pilsen, os poetas e cantores da Eslovóquia, todos ardem nessa tarde e nessa praça. Queimamos a coragem e o heroísmo, queimamos a nossa infinita resistência. Não é verdade, Soldado Schweik? Eles vieram das estepes e disseram: É proibido morrer pela Pátria, é proibido resistir à opressão, é proibido combater a ocupação. (Refrão) É proibido amar os campos verdes do seu país. É proibido amar o verde da esperança. É proibido amar a Esperança Estás proibido, Jan Palach! És proibido, Jan Palach! Estás proibido de existir, Jan Palach! Estás proibido de morrer! Eles vieram das estepes e disseram todas estas palavras. Mas também é verdade que disse um dia o Rei Venceslau, montado em seu cavalo: «Esta nossa terra será livre, e nela crescerão livres as virgens, as mães e os filhos. E nela crescerão livres as flores.» E das flores virão rosas, rosas brancas, para cobrir a campa de Jan Palach. Arde o Coração de Praga, arde o corpo de Jan Palach, arde o corpo do Futuro. E já cresce a Primavera!

Florbela Espanca Ser poeta Cantado por Luís Represas Ser Poeta é ser mais alto, é ser maiorDo que os homens! Morder como quem beija!É ser mendigo e dar como quem sejaRei do Reino de Aquém e de Além Dor!<É ter de mil desejos o esplendorE não saber sequer que se deseja!É ter cá dentro um astro que flameja,É ter garras e asas de condor!<É ter fome, é ter sede de Infinito!Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...É condensar o mundo num só grito!É seres alma e sangue e vida em mimE dizê-lo cantando a toda gente!

José Gomes Ferreira (Musicado por Fernando Lopes Graça Acordai Interpretado pelo Kamerkoor JIP - Coro de câmara JIP de Utrecht (Países Baixos) Acordaiacordaihomens que dormisa embalar a dordos silêncios visvinde no clamordas almas virisarrancar a florque dorme na raizAcordaiacordairaios e tufõesque dormis no are nas multidõesvinde incendiarde astros e cançõesas pedras do maro mundo e os coraçõesAcordaiacendeide almas e de sóiseste mar sem caisnem luz de faróise acordai depoisdas lutas finaisos nossos heróisque dormem nos covaisAcordai!

voltar

Poemas 1

Poemas 2

Poemas 3

Nota explicativa

Cantando espalharei por toda a parte

voltar

A Semana da Leitura deste ano de 2021 é diferente das realizadas nos anos anteriores. Como outros eventos nos últimos meses, a pandemia de COVID 19 obrigou a alterar as formas de trabalho e a intervenção das Bibliotecas. Os conteúdos em formato digital têm vindo a ganhar espaço, respondendo às necessidades da comunidade educativa, sobretudo nos momentos de ensino à distância.Pensamos que todos nós já passamos por extraordinárias experiências ao ouvir uma música: de descobrir um poema ou um autor através de uma música; de ouvirmos uma música e não reconhecermos nela as palavras de um poeta; de nos ligarmos às palavras de uma canção, independentemente do seu autor; ou ainda de percebermos a força das palavras tornadas canção.O que aqui apresentamos é uma seleção de poemas de autores de língua portuguesa e a respetiva interpretação musical. São palavras de poetas de épocas muito diferentes, da Idade Média à contemporaneidade, com registos muito diferenciados. São poetas portugueses mas também de Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique, mostrando a riqueza da nossa língua e a sua fantástica diversidade. São poetas consagrados como Camões e Pessoa, mas também muitos outros menos reconhecidos mas cujos textos merecem uma atenção especial.Os vídeos que acompanham os poemas são, de igual forma muitos distintos. Alguns são muito básicos e interessam apenas pelo som; outros permitem acompanhar a leitura dos poemas; mas há também aqueles que são filmes que acrescentam valor às palavras e à música.Cabe a cada um fazer a escolha: experimentem ler o poema e depois ouvir a música; e fazer o contrário; e acompanhar a música com a leitura. Escolham os que mais gostam, os que acham que a música valorizou e os que passariam despercebidos se não fossem cantados. A escolha e seleção dos poemas foi, obviamente, subjetiva e muitos mais caberiam aqui. Fica para uma próxima... se a tanto nos ajudar o engenho e arte!

Biblioteca da Escola Secundária de Amares

biblioesamares@gmail.com

1. Para os braços da minha mãe, de Pedro Abrunhosa, interpretado por Pedro Abrunhosa e Camané2. Quem me leva os meus fantasmas, de Pedro Abrunhosa, interpretado por Maria Bethânia3. Na grande casa branca, de José Eduardo Agualusa, interpretado por João Afonso 4. Trova do vento que passa, de Manuel Alegre, interpretado por Adriano Correia de Oliveira 5. O navio negreiro, de António Castro Alves, interpretado por Caetano Veloso e Maria Bethânia 6. As sem razões do amor, de Carlos Drumond de Andrade, interpretado por Tunai e Milton Nascimento 7. Não canto porque sonho, de Eugénio de Andrade, interpretado por Noiserv (1) e Fausto e Zeca Afonso (2) 8. Adeus, de Eugénio de Andrade, Interpretado por Simone de Oliveira 9. Cantata da Paz, de Sophia de Mello Breyner Andresen, interpretado por Francisco Fanhais 10. Sei que estou só, de Sophia de Mello Breyner Andresen, por Tiago Bettencourt 11. Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto, de António Lobo Antunes, interpretado por Naifa 12. Disse-te adeus à partida, de António Lobo Antunes, interpretado por Kátia Guerreiro 13. Cantar para um pastor, de Matilde Rosa Araújo, interpretado por Raquel Tavares 14. Inquietação, de José Mário Branco, interpretado por Camané e Dead Combo 15. A Banda, de Chico Buarque, cantado por Chico Buarque 16. Fico assim sem você, de Adriana Calcanhotto, interpretado por Adriana Cacanhotto 17. Verdes são os campos, de Luís de Camões, interpretado por Úxia (1) e José Afonso (2) 18. Endechas a Bárbara escrava, de Luís de Camões, interpretado por José Afonso 19. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de Luís de Camões, interpretado por José Mário Branco 20. Luta, de Capicua, interpretado por Capicua e Aline Frazão21. Queixa das almas jovens censuradas, de Natália Correia, interpretado por José Mário Branco 22. Silvestre e o idioma, de Mia Couto, interpretado por João Afonso23. Quero ser tambor, de José Craveirinha, interpretado por Narf 24. Ouvi dizer, de Manuel Cruz, interpretado por Ornatos Violeta 25. Namoro, de Viriato da Cruz, interpretado por Toty Sa'Med (1) e Sérgio Godinho (2) 26. O barco vai de saída, de Fausto Bordalo Dias, interpretado por Fausto27. Ai flores, ai flores do verde pinho, de Dom Dinis, interpretado por Helena de Alfonso 28. Pescador da barca bela, de Almeida Garrett, interpretado por Teresa Silva Carvalho

Poemas 1

voltar

Poemas 2

Poemas 3

Pedro Abrunhosa Quem me leva os meus fantasmas Cantado por Maria Bethânia Aquele era o tempo Em que as mãos se fechavam E nas noites brilhantes as palavras voavam Eu via que o céu me nascia dos dedos E a Ursa Maior eram ferros acesos Marinheiros perdidos em portos distantes Em bares escondidos Em sonhos gigantes E a cidade vazia Da cor do asfalto E alguém me pedia que cantasse mais alto Quem me leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada? Aquele era o tempo Em que as sombras se abriam Em que homens negavam O que outros erguiam E eu bebia da vida em goles pequenos Tropeçava no riso, abraçava venenos De costas voltadas não se vê o futuro Nem o rumo da bala Nem a falha no muro E alguém me gritava Com voz de profeta Que o caminho se faz Entre o alvo e a seta Quem leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada? De que serve ter o mapa Se o fim está traçado De que serve a terra à vista Se o barco está parado De que serve ter a chave Se a porta está aberta De que servem as palavras Se a casa está deserta? Quem me leva os meus fantasmas Quem me salva desta espada Quem me diz onde é a estrada?

Pedro Abrunhosa Para os braços da minha mãe Cantado por Pedro Abrunhosa e Camané Cheguei ao fundo da estrada,Duas léguas de nada,Não sei que força me mantém.É tão cinzenta a AlemanhaE a saudade tamanha,E o verão nunca mais vem.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe. Trouxe um pouco de terra,Cheira a pinheiro e a serra,Voam pombasNo beiral.Fiz vinte anos no chão,Na noite de Amsterdão,Comprei amorPelo jornal.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe. Vim em passo de bala,Um diploma na mala,Deixei o meu amor p’ra trás.Faz tanto frio em Paris,Sou já memória e raiz,Ninguém sai donde tem Paz.Quero ir para casaEmbarcar num golpe de asa,Pisar a terra em brasa,Que a noite já aí vem.Quero voltarPara os braços da minha mãe,Quero voltarPara os braços da minha mãe.

José Eduardo Agualusa Na grande casa branca interpretado por João Afonso Na grande casa branca onde eu vivi E fui feliz para sempre Tudo persiste idêntico e perpétuo É a mesma ainda a luz crepuscular Dos quartos o quieto momento E nas largas varandas abertas sobre o mar É o mesmo ainda o perfume do vento Em algum lado a casa há-de estar Eu, é que já não estou Eu é que sou as ruínas dela A casa está vazia, ninguém lá mora Salvo aranhas e capins Vê lá bem, a casa perdeu-se de nós E todavia Nunca ela foi tão nossa como agora

Manuel Alegre Trova do vento que passa Interpretado por Adriano Correia de Oliveira Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste. Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de sevidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.

António Castro Alves O navio negreiro Interpretado por Caetano Veloso e Maria Bethânia 'Stamos em pleno mar Era um sonho dantesco... o tombadilho, Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa dos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais! Qual num sonho dantesco as sombras voam... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanaz!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são?... Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa musa, Musa libérrima, audaz! São os filhos do deserto Onde a terra esposa a luz. Onde voa em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados, Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão... Homens simples, fortes, bravos... Hoje míseros escravos Sem ar, sem luz, sem razão... São mulheres desgraçadas Como Agar o foi também, Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos Filhos e algemas nos braços, N'alma lágrimas e fel. Como Agar sofrendo tanto Que nem o leite do pranto Têm que dar para Ismael... Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana Quando a virgem na cabana Cisma das noites nos véus... ...Adeus! ó choça do monte!... ...Adeus! palmeiras da fonte!... ...Adeus! amores... adeus!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão? Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... E existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?!... Silêncio!... Musa! chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no seu pranto... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga, Como um íris no pélago profundo!... ...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares!

Sophia de Mello Breyner Andresen Cantata da Paz Interpretado por Francisco Fanhais Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Relatórios da fome O caminho da injustiça A linguagem do terror A bomba de Hiroshima Vergonha de nós todos Reduziu a cinzas A carne das crianças DÁfrica e Vietname Sobe a lamentação Dos povos destruídos Dos povos destroçados Nada pode apagar O concerto dos gritos O nosso tempo é Pecado organizado.

Sophia de Mello Breyner Andresen Sei que estou só Cantado por Tiago Bettencourt Sei que estou só e gelo entre as folhagens Nenhuma gruta me pode proteger Como um laço deslaça-se o meu ser E nos meus olhos morrem as paisagens. Desligo da minha alma a melodia Que inventei no ar. Tombo das imagens Como um pássaro morto das folhagens Tombando se desfaz na terra fria.

Capicua Luta Interpretado por Capicua e Aline Frazão Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Tu conheces as minhas fases todas Como a lua E desconheces que a vida muda Até a tua lupa E que eu não sou a única que está diferente E não há uma só critica ou vitima em julgamento Eis o reconhecimento vamos começar de novo Reconhecermos os erros é conhecermos o outro Faz o que é suposto, recomeço é necessário Seco as lagrimas do rosto em mais um aniversario E confio que por muito que isto tudo seja um erro Tem de haver a recompensa para se ser tao ingenuo E eu juro, finjo que páro Digo que saio mas não vou Eu calo e quando falo Eu nunca abro o jogo todo Eu fico achando que arco Mas depois mato o que restou Não queimo então Não chega porque amor para mim é fogo! Insisto, eu não desisto ainda resisto a mais um teste Se não é isto, não existe porque amor tem de ser este E eu deitava fogo à casa com palavras se pudesse Eu punha o pe na estrada e não voltava mais a ver-te Eu rezava se soubesse ou se desse algum resultado E se houvesse alguma prece que mudasse o meu passado Pra não te ter tatuado a ferro quente no colo Com a frieza de que quem mata com uma lupa ao sol Pra não te ter sempre ao lado, em fantasma quando não estás Sentindo que olhar para a frente é voltar andar para trás Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Tatuado a ferro quente queimo a mata lupa ao sol O passado à minha frente e o fantasma no meu colo Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Hoje a minha dor é esta No pasmo dos descaminhos Querer deitar fogo à floresta Sem queimar os ninhos Nem um som da sesta Juro, finjo que páro Digo que saio mas não vou Eu calo e quando falo Eu nunca abro o jogo todo Eu fico achando que arco Mas depois mato o que restou Não queimo então Não chega porque amor para mim é fogo

José Mário Branco Inquietação Interpretado por Camané e Dead Combo A contas com o bem que tu me fazes A contas com o mal por que passei Com tantas guerras que travei Já não sei fazer as pazes São flores aos milhões entre ruínas Meu peito feito campo de batalha Cada alvorada que me ensinas Oiro em pó que o vento espalha Cá dentro inquietação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer Qualquer coisa que eu devia perceber Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Ensinas-me fazer tantas perguntas Na volta das respostas que eu trazia Quantas promessas eu faria Se as cumprisse todas juntas Não largues esta mão no torvelinho Pois falta sempre pouco para chegar Eu não meti o barco ao mar Pra ficar pelo caminho Cá dentro inqueitação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer Qualquer coisa que eu devia perceber Porquê, não sei Porquê, não sei Porquê, não sei ainda Cá dentro inquietação, inquietação É só inquietação, inquietação Porquê, não sei Mas sei É que não sei ainda Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer Qualquer coisa que eu devia resolver Porquê, não sei Mas sei Que essa coisa é que é linda

Eugénio de Andrade Adeus Interpretado por Simone de Oliveira Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, no tempo em que o teu corpo era um aquário, no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada. E, no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti Não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.

Carlos Drumond de Andrade As sem razões do amor interpretado por Tunai e Milton Nascimento Eu te amo porque te amo.Não precisas ser amante,e nem sempre sabes sê-lo.Eu te amo porque te amo.Amor é estado de graçae com amor não se paga.Amor é dado de graça,é semeado no vento,na cachoeira, no eclipse.Amor foge a dicionáriose a regulamentos vários.Eu te amo porque não amobastante ou demais a mim.Porque amor não se troca,não se conjuga nem se ama.Porque amor é amor a nada,feliz e forte em si mesmo.Amor é primo da morte,e da morte vencedor,por mais que o matem (e matam)a cada instante de amor.

Chico Buarque A Banda Cantado por Chico Buarque O homem sério que contava dinheiro parou O faroleiro que contava vantagem parou A namorada que contava as estrelas Parou para ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada sorriu A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou A moça feia debruçou na janela Pensando que a banda tocava pra ela A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu A lua cheia que vivia escondida surgiu Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor Depois da banda passar Cantando coisas de amor

Luís de Camões Endechas a Bárbara escrava interpretado por José Afonso Aquela cativa Que me tem cativo, Porque nela vivo Já não quer que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que pera meus olhos Fosse mais fermosa. Nem no campo flores, Nem no céu estrelas Me parecem belas Como os meus amores. Rosto singular, Olhos sossegados, Pretos e cansados, Mas não de matar. U~a graça viva, Que neles lhe mora, Pera ser senhora De quem é cativa. Pretos os cabelos, Onde o povo vão Perde opinião Que os louros são belos. Pretidão de Amor, Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a cor. Leda mansidão, Que o siso acompanha; Bem parece estranha, Mas bárbara não. Presença serena Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Toda a minha pena. Esta é a cativa Que me tem cativo; E. pois nela vivo, É força que viva.

Adriana Calcanhotto Fico assim sem você Interpretado por Adriana Cacanhotto Avião sem asa Fogueira sem brasa Sou eu assim, sem você Futebol sem bola Piu-Piu sem Frajola Sou eu assim, sem você Por que é que tem que ser assim? Se o meu desejo não tem fim Eu te quero a todo instante Nem mil auto-falantes Vão poder falar por mim Amor sem beijinho Bochecha sem Claudinho Sou eu assim sem você Circo sem palhaço namoro sem amasso Sou eu assim sem você Tô louca pra te ver chegar Tô louca pra te ter nas mãos Deitar no teu abraço Retomar o pedaço Que falta no meu coração Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo Por quê? Por quê? Neném sem chupeta Romeu sem Julieta Sou eu assim sem você Carro sem estrada Queijo sem goiabada Sou eu assim sem você Por que é que tem que ser assim Se o meu desejo não tem fim Eu te quero a todo instante Nem mil alto-falantes vão poder falar por mim Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo

Manuel Cruz Ouvi dizer Interpretado por Ornatos Violeta Ouvi dizer que o nosso amor acabou pois eu não tive a noção do seu fim pelo que eu já tentei eu não vou vê-lo em mim se eu não tive a noção de ver nascer um homem e ao que eu vejo tudo foi para ti uma estúpida canção que só eu ouvi e eu fiquei com tanto para dar e agora não vais achar nada bem que eu pague a conta em raiva e pudesse eu pagar de outra forma ouvi dizer que o mundo acaba amanhã e eu tinha tantos planos para depois fui eu quem virou as páginas na pressa de chegar até nós sem tirar das palavras seu cruel sentido sobre a razão estar cega resta-me apenas uma razão um dia vais ser tu e um homem como tu como eu não fui um dia vou-te ouvir dizer e pudesse eu pagar de outra forma sei que um dia vais dizer e pudesse eu pagar de outra forma a cidade está deserta e alguém escreveu o teu nome em toda a parte nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas em todo o lado essa palavra repetida ao expoente da loucura ora amarga, ora doce para nos lembrar que o amor é uma doença quando nele julgamos ver a nossa cura

José Craveirinha Quero ser tambor Interpretado por Narf (Francisco Xavier Pérez Vásquez) Tambor está velho de gritar Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos. Nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. Nem nada! Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. Oh velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia. Só tambor ecoando como a canção da força e da vida Só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque! Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor só tambor!

Mia Couto Silvestre e o idioma interpretado por João Afonso Silvestre quer saber porque razão eu estrago o português escrevendo palavras que nem há. Não é a pessoa que escolhe a palavra. É o inverso. Isso eu podia ter respondido. Mas não. O tudo que disse foi: é um crime passional, Silvestre. É que eu amo tanto a Vida que ela não tem cabimento em nenhum idioma. Silvestre sorriu. Afinal, também ele já cometera o idêntico crime: todas as mulheres que amara ele as rebatizara, vezes sem fim. Amor se parece com a Vida: ambos nascem na sede da palavra, ambos morrem na palavra bebida.

Natália Correia Queixa das almas jovens censuradas Cantado por José Mário Branco Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura Dão-nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante Dão-nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino Dão-nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte

António Lobo Antunes Disse-te adeus à partida Cantado por Kátia Guerreiro Disse-te adeus á partida Digo-te adeus á chegada Se quero tudo na vida Já de ti, não quero nada Se quero tudo na vida Já de ti, não quero nada Disse-te adeus e depois Fiquei no mesmo lugar No leito de nós os dois Só tem raízes no meio No leito de nós os dois Só tem raízes no meio Dizer adeus é diferente Quando te digo baixinho No meio de tanta gente É que me sinto sozinho No meio de tanta gente É que me sinto sozinho Como a gaivota na voz Disse-te adeus e parti Se esta cama somos nós Não hei de morrer sem ti Se esta cama somos nós Não hei de morrer sem ti

Fausto Bordalo Dias O barco vai de saída Cantado por Fausto (Bordalo Dias) O barco vai de saídaAdeus ó cais de alfamaSe agora vou de partidaLevo-te comigo ó cana verdeLembra-te de mim ó meu amorLembra-te de mim nesta aventuraP'ra lá da loucuraP'ra lá do EquadorAh! mas que ingrata ventura bem me posso queixarDa pátria a pouca farturaCheia de mágoas ai quebra marCom tantos perigos ai minha vidaCom tantos medos e sobressaltosQue eu já vou aos saltosQue eu vou de fugidaSem contar essa história escondidaPor servir de criado a essa senhoraServiu-se ela também tão sedutoraFoi pecadoFoi pecadoE foi pecado sim senhorQue vida boa era a de LisboaGingão de roda batidaCorsário sem cruzadoAo som do baile mandadoEm terras de pimenta e maravilhaCom sonhos de prata e fantasiaCom sonhos da cor do arco-írisDesvairas se os viresDesvairas magiaJá tenho a vela enfunadaMarrano sem vergonhaJudeu sem coisa sem fronhaVou de viagem ai que largadaSó vejo cores ai que alegriaSó vejo piratas e tesourosSão pratas, são ourosSão noites, são diasVou no espantoso trono das águasVou no tremendo assopro dos ventosVou por cima dos meus pensamentosArrepiaArrepiaE arrepia sim senhorQue vida boa era a de LisboaO mar das águas ardendoO delírio dos céusA fúria do barlaventoArreia a vela e vai marujo ao lemeVira o barco e cai marujo ao marVira o barco na curva da morteOlha a minha sorteOlha o meu azarE depois do barco viradoGrandes urros e gritosNa salvação dos aflitosEsfola, mata, agarraAi quem me ajudaReza, implora, escapaAi que pagodeReza tremem heróis e eunucosSão mouros, são turcosSão mouros acodeAquilo é uma tempestade medonhaAquilo vai p'ra lá do que é eternoAquilo era o retrato do infernoVai ao fundoVai ao fundoE vai ao fundo sim senhorQue vida boa era a de LisboaQue vida boa era a de Lisboa

Dom Dinis Ai flores, ai flores de verde pinho interpretado por Helena de Alfonso Ai flores, ai flores do verde pinho, se sabedes novas do meu amigo? Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do qui mi há jurado? Ai Deus, e u é? Vós me perguntardes polo voss'amigo, e eu bem vos digo que é sã'e vivo. Ai Deus, e u é? Vós me perguntardes polo voss'amado, e eu bem vos digo que é viv'e são. Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é sã'e vivo e seera vosc'ant'o prazo saído. Ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é viv' e são e seera vosc'ant'o prazo passado Ai Deus, e u é?

Almeida Garrett Pescador da barca bela interpretado por Teresa Silva Carvalho Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela. Que é tão bela, Oh pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador! Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Oh pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela, Só de vê-la, Oh pescador. Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela, Foge dela Oh pescador!

Luís de Camões Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades Interpretado por José Mário Branco Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. (E se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve), as saudades. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e, enfim, converte em choro o doce canto. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança) E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía. (Mas se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança)

1 2 Eugénio de Andrade Não canto porque sonho Interpretado por Noiserv (1) e Fausto e Zeca Afonso (2) Não canto porque sonho. Canto porque és real. Canto o teu olhar maduro, teu sorriso puro, a tua graça animal. Canto porque sou homem. Se não cantasse seria mesmo bicho sadio embriagado na alegria da tua vinha sem vinho. Canto porque o amor apetece. Porque o feno amadurece nos teus braços deslumbrados. Porque o meu corpo estremece ao vê-los nus e suados.

António Lobo Antunes Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto Interpretado por Naifa Eu que me comovoPor tudo e por nadaDeixei-te paradaNa berma da estradaUsei o teu corpoPaguei o teu preçoEsqueci o teu nomeLimpei-me com o lençoOlhei-te a cinturaDe pé no alcatrãoLevantei-te as saiasDeitei-te no bancoNum bosque de faiasDe mala na mãoNem sequer falasteNem sequer beijasteNem sequer gemeste,Mordeste, abraçasteQuinhentos escudosFoi o que dissesteTinhas quinze anosDezasseis, dezasseteCheiravas a matoÀ sopa dos pobresA infância sem quartoA suor, a chicleteSaíste do carroAlisando a blusaEspiei da janelaRosto de aguarelaCoxa em semifusaSoltei o travãoVoltei para casaDe chaves na mãoSobrancelha em asaDisse: fiz serãoAo filho e à mulherRepeti a frutaAcabei a ceiaLarguei o talherEstendi-me na camaDe ouvido à escutaE perna cruzadaQue de olhos em chamaSó tinha na ideiaTeu corpo paradoNa berma da estradaEu que me comovoPor tudo e por nada

Matilde Rosa Araújo Cantar para um pastor Interpretado por Raquel Tavares Acorda meu sangue preso Acorda meu sangue mudo Se te amo não te amo E meu cantar não diz tudo, Se te amo não te amo E meu cantar não diz tudo. Meu olhar da madrugada Pastor da noite comprida Luz no peito vigiada Liberdade consentida, Luz no peito vigiada Liberdade consentida. Acorda meu sangue preso Rasga o ventre do meu dia Se te amo não te amo Meu pastor de alegria, Se te amo não te amo Meu pastor de alegria. Meu pastor de alegria Meu olhar de madrugada Se eu piso campos verdes É sempre noite na estrada, Se eu piso campos verdes É sempre noite na estrada. Se te amo não te amo Meu olhar da madrugada Trago uma pomba de espanto Nesta garganta velada, Trago uma pomba de espanto Nesta garganta velada.

1 2 Luís de Camões Verdes são os campos Interpretado por Úxia (1) e José Afonso (2) Verdes são os campos,Da cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Verdes são os campos,Da cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.

1 2 Viriato da Cruz Namoro Interpretado por Toty Sa'Med (1) e Sérgio Godinho (2) Mandei-lhe uma carta em papel perfumadoe com a letra bonita eu disse ela tinhaum sorrir luminoso tão quente e gaiatocomo o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridasespalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas.sua pele macia - era sumaúma...Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosastão rijo e tão doce - como o maboque...Seu seios laranjas - laranjas do Logeseus dentes... - marfim...Mandei-lhe uma cartae ela disse que não. Mandei-lhe um cartãoque o Maninjo tipografou:"Por ti sofre o meu coração"Num canto - SIM, noutro canto - NÃOE ela o canto do NÃO dobrou. Mandei-lhe um recado pela Zefa do Setepedindo rogando de joelhos no chãopela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,me desse a ventura do seu namoro...E ela disse que não. Levei à avó Chica, quimbanda de famaa areia da marca que o seu pé deixoupara que fizesse um feitiço forte e seguroque nela nascesse um amor como o meu...E o feitiço falhou. Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,paguei-lhe doces na calçada da Missão,ficamos num banco do largo da Estátua,afaguei-lhe as mãos...falei-lhe de amor... e ela disse que não. Andei barbado, sujo, e descalço,como um mona-ngamba.Procuraram por mim" - Não viu...(ai, não viu...?) Não viu Benjamim?"E perdido me deram no morro da Samba.E para me distrairlevaram-me ao baile do sô Januáriomas ela lá estava num canto a rircontando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário Tocaram uma rumba dancei com elae num passo maluco voamos na salaqual uma estrela riscando o céu!E a malta gritou: "Aí Benjamim!"Olhei-a nos olhos - sorriu para mimpedi-lhe um beijo - e ela disse que sim. Falecimento:Nascimento:Profissão:Género Literário:Nome Completo:Autor:Viriato da CruzViriato Francisco Clemente da CruzPoetaPolítico e escritor25 de março de 1928, Porto Amboim, Angola13 de junho de 1973, Pequim, República Popular da China

Poemas 2

voltar

Poemas 1

29. Lágrima de Preta, de António Gedeão, cantado por Adriano Correia de Oliveira 30. Pedra Filosofal, de António Gedeão, cantado por Manuel Freire 31. O primeiro dia, de Sérgio Godinho, cantado por Sérgio Godinho 32. Asas Delta, de Regina Guimarães, cantado por Clã 33. O mundo a meus pés, de Regina Guimarães, cantado por Três Tristes Tigres 34. Segredo, de Maria Teresa Horta, interpretado por Cristina Branco 35. N4V2mix, de Daniel Jonas, interpretado por Lisboa Poetry Orchestra 36. Fado do retorno, de Lídia Jorge, interpretado por Mísia 37. Lisboa, Oxalá, de Nuno Júdice, Interpretado por Carlos do Carmo e Carminho 38. Mãe negra, de Alda Lara, cantado por Paulo de Carvalho 39. A propósito de estrelas, de Adília Lopes, cantado por Arthur Nogueira 40. Contabilidade, de valter hugo mãe, interpretado por Márcia, Camané e Dead Combo 41. A pele que há em mim, de Márcia, interpretado por Márcia e JP Simões 42. Povo que lavas no rio, de Pedro Homem de Mello, interpretado por Amália Rodrigues (1) e António Variações (2) 43. Motivo, de Cecília Meireles, interpretado por Fagner 44. Comigo me desavim, de Francisco de Sá de Miranda, Interpretado por D'Alma 45. Os meninos de Huambo, de Manuel Rui Monteiro, interpretado por Ruy Mingas 46. A casa, de Vinicius de Moraes, interpretado por Vinicius de Moraes 47. Eu sei que vou te amar, de Vinicius de Moraes, interpretado por Ana Carolina 48. Até ao fim, de Vasco Graça Moura, interpretado por Kátia Guerreiro 49. Talvez, de Vasco Graça Moura, interpretado por Carminho 50. Soneto do amor difícil, David Mourão-Ferreira, cantado por Tiago Bettencourt 51. Rondel do Alentejo, de Almada Negreiros, interpretado por Ricardo Ribeiro 52. Carta a Ângela, de Carlos Oliveira, interpretado por Carlos do Carmo 53. Há palavras que nos beijam, de Alexandre O'Neill, cantado por Mariza 54. Poema de desamor, de Alexandre O'Neill, cantado por Tiago Bettencourt 55. Encosta-te a mim, de Jorge Palma, interpretado por Jorge Palma 56. Flagrante, de Maria do Rosário Pedreira, interpretado por António Zambujo

Poemas 3

Nuno Júdice Lisboa, Oxalá Interpretado por Carlos do Carmo e Carminho Tal qual esta Lisboa, roupa posta à janelaTal qual esta Lisboa, roxa jacarandáSei de uma outra Lisboa, de avental e chinelaAi Lisboa fadista, de Alfama e oxaláSei de uma outra Lisboa, de avental e chinelaAi Lisboa fadista, de Alfama e oxaláLisboa lisboeta, da noite mais escuraDe ruas feitas sombra, de noites e vielasPisa o chão, pisa a pedra, pisa a vida que é duraLisboa tão sozinha, de becos e ruelasPisa o chão, pisa a pedra, pisa a vida que é duraLisboa tão sozinha, de becos e ruelasMas o rosto que espreita, por detrás da cortinaÉ o rosto d'outrora feito amor feito agoraRiso de maré viva numa boca ladinaRiso de maré cheia num beijo que demoraRiso de maré viva numa boca ladinaRiso de maré cheia num beijo que demoraE neste fado deixo esquecido aqui ficarLisboa sem destino, que o fado fez cantarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegarCidade marinheira sem ter que navegarCaravela da noite que um dia vai chegar

Alda Lara Prelúdio Interpretado por Paulo de Carvalho e Matias Damásio (Mãe Negra) Pela estrada desce a noite Mãe-Negra, desce com ela... Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninos que gostava de embalar?... Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?... Mãe-Negra não sabe nada... Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra!... Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar... Muitos partiram p'ra longe, quem sabe se hão-de voltar!... Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada. É a tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada.

Adília Lopes A propósito de estrelas Cantado por Arthur Nogueira Não sei se me interessei pelo rapaz por ele se interessar por estrelas se me interessei por estrelas por me interessar pelo rapaz hoje quando penso no rapaz penso em estrelas e quando penso em estrelas penso no rapaz como me parece que me vou ocupar com as estrelas até ao fim dos meus dias parece-me que não vou deixar de me interessar pelo rapaz até ao fim dos meus dias nunca saberei se me interesso por estrelas se me interesso por um rapaz que se interessa por estrelas já não me lembro se vi primeiro as estrelas se vi primeiro o rapaz se quando vi o rapaz vi as estrelas

Márcia A pele que há em mim interpretado por Márcia e JP Simões Quando o dia entardeceu E o teu corpo tocou Num recanto do meu Uma dança acordou E o sol apareceu De gigante ficou Num instante apagou O sereno do céu E a calma a aguardar lugar em mim O desejo a contar segundo o fim. Foi num ar que te deu E o teu canto mudou E o teu corpo no meu Uma trança arrancou E o sangue arrefeceu E o meu pé aterrou Minha voz sussurrou O meu sonho morreu Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada. Dá-me o quarto vazio da minha casa Vou deixar-te no fio da tua fala. Sobre a pele que há em mim Tu não sabes nada. Quando o amor se acabou E o meu corpo esqueceu O caminho onde andou Nos recantos do teu E o luar se apagou E a noite emudeceu O frio fundo do céu Foi descendo e ficou. Mas a mágoa não mora mais em mim Já passou, desgastei Para lá do fim É preciso partir É o preço do amor Para voltar a viver Já nem sinto o sabor A suor e pavor Do teu colo a ferver Do teu sangue de flor Já não quero saber.

valter hugo mãe Contabilidade Interpretado por Márcia, Camané e Dead Combo venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste o pior amor é este, o que já é feito de ódio também. o pior amor é este, o que já é feito de ódio também, o pior é o amor é este, o que já é feito de ódio também

Francisco de Sá de Miranda Comigo me desavim Interpretado por D'Alma Comigo me desavim,Sou posto em todo perigo;Não posso viver comigoNem posso fugir de mim.Com dor da gente fugia,Antes que esta assi crecesse:Agora já fugiriaDe mim, se de mim pudesse.Que meo espero ou que fimDo vão trabalho que sigo,Pois que trago a mim comigoTamanho imigo de mim?

1 2 Pedro Homem de Mello Povo que lavas no rio Interpretado por Amália Rodrigues (1) acompanhada por Don Byas António Variações (2) Povo que lavas no rioE que talhas com o teu machadoAs tábuas de meu caixãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas do meu caixãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoFui ter à mesa redondaBeber em malga que escondaO beijo de mão em mãoFui ter à mesa redondaBeber em malga que escondaO beijo de mão em mãoEra o vinho que me desteÁgua pura, fruto agresteMas a tua vida nãoO aroma de urze e de lamaDormi com eles na camaTive a mesma condiçãoO aroma de urze e de lamaDormi com eles na camaTive a mesma condiçãoPovo, povo, eu te pertençoDeste-me alturas de incensoMas a tua vida nãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas de meu caixãoPovo que lavas no rioQue talhas com o teu machadoAs tábuas do meu caixãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida nãoPode haver quem te defendaQuem compre o teu chão sagradoMas a tua vida não.

Vinicius de Moraes Eu sei que vou te amar Interpretado por Ana Carolina Eu sei que vou te amarPor toda a minha vida eu vou te amarEm cada despedida eu vou te amarDesesperadamenteEu sei que vou te amarE cada verso meu seráPra te dizer que eu sei que vou te amarPor toda minha vidaEu sei que vou chorarA cada ausência tua eu vou chorarMas cada volta tua há de apagarO que esta ausência tua me causouEu sei que vou sofrerA eterna desventura de viverA espera de viver ao lado teuPor toda a minha vida

Vasco Graça Moura Até ao fim Cantado por Kátia Guerreiro Intensamente, amor, intensamente Ponho na minha voz esta saudade Que é feita de futuro no presente E na ilusão é feita de verdade Intensamente, amor, intensamente Desesperando, amor, desesperando Por mesmo assim eu não te dizer tudo Mesmo ao lembrar-me de onde, e como, e quando Teu coração mudou, mas eu não mudo Desesperando, amor, desesperando Até ao fim, amor, até ao fim Do mundo, tal e qual pedro e Inês Aqui te espero, aqui me tens a mim Neste mísero estado em que me vês Até ao fim, amor, até ao fim

David Mourão_Ferreira Soneto do amor difícil Interpretado por Tiago Bettencourt A praia abandonada recomeça logo que o mar se vai, a desejá-lo: é como o nosso amor, somente embalo enquanto não é mais que uma promessa... Mas se na praia a onda se espedaça, há logo a nostalgia duma flor que ali devia estar para compor a vaga em seu rumor de fim de raça. Bruscos e doloridos, refulgimos no silêncio da morte que nos tolhe, como entre o mar e a praia um longo molhe de súbito surgido à flor dos limos. E deste amor difícil só nasceu desencanto na curva do teu céu.

Almada Negreiros Rondel do Alentejo Interpretado por Ricardo Ribeiro Em minarete mate bate leve verde neve minuete de luar. Meia-noite do Segredo no penedo duma noite de luar. Olhos caros de Morgada enfeitava com preparos de luar. Rompem fogo pandeiretas morenitas, bailam tetas e bonitas, bailam chitas e jaquetas, são de fitas desafogo de luar. Voa o xaile andorinha pelo baile, e a vida doentinha e a ermida ao luar. Laçarote escarlate de cocote alegria de Maria la-ri-rate em folia de luar. Giram pés giram passos girassóis os bonés, os braços estes dois iram laços o luar. colete esta virgem endoidece como o S do foguete em vertigem de luar. Em minarete mate bate leve verde neve minuete de luar.

Carlos Oliveira Carta a Ângela interpretado por Carlos do Carmo Para ti, meu amor, é cada sonho de todas as palavras que escrever, cada imagem de luz e de futuro, cada dia dos dias que viver. Os abismos das coisas, quem os nega, se em nós abertos inda em nós persistem? Quantas vezes os versos que te dou na água dos teus olhos é que existem! Quantas vezes chorando te alcancei e em lágrimas de sombra nos perdemos! As mesmas que contigo regressei ao ritmo da vida que escolhemos! Mais humana da terra dos caminhos e mais certa, dos erros cometidos, foste de novo, e sempre, a mão da esperança nos meus versos errantes e perdidos. Transpondo os versos vieste à minha vida e um rio abriu-se onde era areia e dor. Porque chegaste à hora prometida aqui te deixo tudo, meu amor!

Alexandre O'Neill Poema de desamor Interpretado por Tiago Bettencourt Desmama-te desanca-te desbunda-te Não se pode morar nos olhos de um gato Beija embainha grunhe geme Não se pode morar nos olhos de um gato Serve-te serve sorve lambe trinca Não se pode morar nos olhos de um gato Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te Não se pode morar nos olhos de um gato Arfa arqueja moleja aleija Não se pode morar nos olhos de um gato Ferra marca dispara enodoa Não se pode morar nos olhos de um gato Faz festa protesta desembesta Não se pode morar nos olhos de um gato Arranha arrepanha apanha espanca Não se pode morar nos olhos de um gato

Alexandre O'Neill Há palavras que nos beijam Cantado por Mariza Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.

Jorge Palma Encosta-te a mim Interpretado por Jorge Palma Encosta-te a mim Nós já vivemos cem mil anos Encosta-te a mim Talvez eu esteja a exagerar Encosta-te a mim Dá cabo dos teus desenganos Não queiras ver quem eu não sou Deixa-me chegar Chegado da guerra Fiz tudo p´ra sobreviver, em nome da terra No fundo p´ra te merecer Recebe-me bem Não desencantes os meus passos Faz de mim o teu herói Não quero adormecer Tudo o que eu vi Estou a partilhar contigo O que não vivi, hei-de inventar contigo Sei que não sei Às vezes entender o teu olhar Mas quero-te bem Encosta-te a mim Encosta-te a mim Desatinamos tantas vezes Vizinha de mim Deixa ser meu o teu quintal Recebe esta pomba que não está armadilhada Foi comprada, foi roubada, seja como for Eu venho do nada Porque arrasei o que não quis Em nome da estrada, onde só quero ser feliz Enrosca-te a mim Vai desarmar a flor queimada Vai beijar o homem-bomba, quero adormecer Tudo o que eu vi Estou a partilhar contigo, e o que não vivi Um dia hei-de inventar contigo Sei que não sei, às vezes entender o teu olhar Mas quero-te bem Encosta-te a mim Encosta-te a mim Quero-te bem Encosta-te a mim

António Gedeão Lágrima de Preta Cantado por Adriano Correia de Oliveira Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

António Gedeão Pedra Filosofal Cantado por Manuel Freire Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Sérgio Godinho O primeiro dia Cantado por Sérgio Godinho A princípio é simples, anda-se sozinho Passa-se nas ruas bem devagarinho Está-se bem no silêncio e no burburinho Bebe-se as certezas num copo de vinho E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo Diz-se do passado, que está moribundo Bebe-se o alento num copo sem fundo E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E é então que amigos nos oferecem leito Entra-se cansado e sai-se refeito Luta-se por tudo o que se leva a peito Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja Olha-se para dentro e já pouco sobeja Pede-se o descanso, por curto que seja Apagam-se dúvidas num mar de cerveja E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida Enfim duma escolha faz-se um desafio Enfrenta-se a vida de fio a pavio Navega-se sem mar, sem vela ou navio Bebe-se a coragem até dum copo vazio E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida E entretanto o tempo fez cinza da brasa E outra maré cheia virá da maré vaza Nasce um novo dia e no braço outra asa Brinda-se aos amores com o vinho da casa E vem-nos à memória uma frase batida Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Regina Guimarães Asas Delta Cantado por Clã Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés e salto Sinto um formigueiro nas mãos e nos braços passarinhos na cabeça Cata-vento nos ouvidos mil antenas nos cabelos Quem me leva tenho pressa Pé de cabra, pé de dança Dançar por gosto não cansa Não vou só, levo o meu bando a dança nos vai juntando Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés e salto Se me pesa o traseiro levanto o meu nariz perco o medo e a vergonha Fecho os olhos aí vou e já não estou onde estou nem sei quando posso parar Pé de cabra, pé de dança Dançar por gosto não cansa Não vou só, levo o meu bando a dança nos vai juntando Hei, tenho asas nos pés tenho asas Hei tenho molas nos pés E salto Mais alto

Regina Guimarães O mundo a meus pés Cantado por Três Tristes Tigres Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Falta o lume, falha a chama Faço a mala, faço a cama Não me lembro de ter sonhado De ter enganado. Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Faça o favor De entrar sem pedir licença. Não pense no que diz Nem diga o que pensa. Falta o nome, falha o cheiro Tudo forte tudo feio Não me lembro de ter gostado de me ter custado Falta o lume, falha a chama Faço a mala, faço a cama Não me lembro de ter sonhado De ter enganado. Faça o favor De entrar sem fazer barulho Rien ne va plus Aprenda a jogar seguro. Já não há, Já não és O mundo a meus pés. Já não há, Já não és O mundo a meus pés.

Daniel Jonas N4V2mix Interpretado por Lisboa Poetry Orchestra Deverias tê-lo feitoCom um fazer realE não pensadoO nunca consumadoO nunca visitadoVisita-se uma vezE de vez o que se fezOu não se fezE agora pensas se o fossesQuem serias tu agoraSeria essa a tua horaOu esta da demoraDe não teres sidoO que deviasQuem há muito te deviasQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadasPassas a mão em conchaPela corcunda da dúvidaPalpas a conta dos anosA conta dos danosNos teus olhos madurosDos teus bons enganosE ante o espelho frio e fundo(espelho mau espelho mau)Que te devolve sorrisos durosDuas uvas te olhamO nunca vindimadoOs ossos transparentesA tua longa perguntaQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadasE nisso moras sem perdãoE tu em todo o ladoSouvenir de tudo, avenir de nadaDe todos os mundosDe mundo nenhumE tu porém nadaNada que te ouçaNada que te hajaNada que te valhaLenta estrada de nadaQue te leva a lado algumTransitória e demoradaQue queres, que dizes?Ninguém te ouve, ninguém te houveNinguém te vale, ninguém que falePor ti e p'lo que fossesIrás de mim dizer a toda a genteQue não fui gente, apenas renteA alguém de quem se ausenteA vida aparente e sua espumaA sua brumaDe incertas madrugadas

Maria Teresa Horta Segredo Interpretado por Cristina Branco Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça nem que corro os cortinados para uma sombra mais espessa Deixa que feche o anel em redor do teu pescoço com as minhas longas pernas e a sombra do meu poço Não contes do meu novelo nem da roca de fiar nem o que faço com eles a fim de te ouvir gritar

Lídia Jorge Fado do retorno interpretado por Mísia Amor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaVoltaste, já voltasteJá entras como sempreAbrandas os teus passosE páras no tapeteEntão que uma luz ardaE assim o fogo aqueçaOs dedos bem unidosMovidos pela pressaAmor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaVoltaste, já volteiTambém cheia de pressaDe dar-te, na paredeO beijo que me peçasEntão que a sombra agiteE assim a imagem façaOs rostos de nós doisTocados pela graça.Amor, é muito cedoE tarde uma palavraA noite uma lembrançaQue não escurece nadaAmor, o que seráMais certo que o futuroSe nele é para habitarA escolha do mais puroJá fuma o nosso fumoJá sobra a nossa mantaJá veio o nosso sonoFechar-nos a gargantaEntão que os cílios olhemE assim a casa sejaA árvore do OutonoCoberta de cereja.

Cecília Meireles Motivo Interpretado por Fagner Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.Irmão das coisas fugidias,não sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.Se desmorono ou se edifico,se permaneço ou me desfaço,- não sei, não sei. Não sei se fico> ou passo.Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo:- mais nada.

Manuel Rui Monteiro Os meninos de Huambo Interpretado por Ruy Mingas Com fios feitos de lágrimas passadasOs meninos de Huambo fazem alegriaConstroem sonhos com os mais velhos de mãos dadasE no céu descobrem estrelas de magiaCom os lábios de dizer nova poesiaSoletram as estrelas como letrasE vão juntando no céu como pedrinhasEstrelas letras para fazer novas palavrasOs meninos à volta da fogueiraVão aprender coisas de sonho e de verdadeVão aprender como se ganha uma bandeiraVão saber o que custou a liberdadeCom os sorrisos mais lindos do planaltoFazem continhas engraçadas de somarSomam beijos com flores e com suorE subtraem manhã cedo por luarDividem a chuva miudinha pelo milhoMultiplicam o vento pelo marSoltam ao céu as estrelas já escritasConstelações que brilham sempre sem pararOs meninos à volta da fogueiraVão aprender coisas de sonho e de verdadeVão aprender como se ganha uma bandeiraVão saber o que custou a liberdadePalavras sempre novas, sempre novasPalavras deste tempo sempre novoPorque os meninos inventaram coisas novasE até já dizem que as estrelas são do povoAssim contentes à voltinha da fogueiraJuntam palavras deste tempo sempre novoPorque os meninos inventaram coisas novasE até já dizem que as estrelas são do povo

Vinicius de Moraes A casa Interpretado por Vinicius de Moraes Era uma casaMuito engraçadaNão tinha tetoNão tinha nadaNinguém podiaEntrar nela nãoPorque na casaNão tinha chãoNinguém podiaDormir na redePorque a casaNão tinha paredeNinguém podiaFazer pipiPorque penicoNão tinha aliMas era feitaCom muito esmeroNa Rua dos BobosNúmero Zero.

Vasco Graça Moura Talvez Interpretado por Carminho Talvez digas um dia o que me queres, Talvez não queiras afinal dizê-lo, Talvez passes a mão no meu cabelo, Talvez eu pense em ti talvez me esperes. Talvez, sendo isto assim, fosse melhor Falhar-se o nosso encontro por um triz Talvez não me afagasses como eu quis, Talvez não nos soubéssemos de cor. Mas não sei bem, respostas não mas dês. Vivo só de murmúrios repetidos, De enganos de alma e fome dos sentidos, Talvez seja cruel, talvez, talvez. Se nada dás, porém, nada te dou Neste vaivém que sempre nos sustenta, E se a própria saudade nos inventa, Não sei talvez quem és mas sei quem sou. Se nada dás, porém, nada te dou Neste vaivém que sempre nos sustenta, E se a própria saudade nos inventa, Não sei talvez quem és mas sei quem sou.

Maria do Rosário Pedreira Flagrante Interpretado por António Zambujo Bem te avisei, meu amor,Que não podia dar certoE era coisa de evitarComo eu, devias supor,Que, com gente ali tão perto,Alguém fosse repararMas não: fizeste beicinhoE como numa promessaFicaste nua para mimPedaço de mau caminhoOnde é que eu tinha a cabeçaQuando te disse que sim?Embora tenhas juradoDiscreta permanecerJá que não estávamos sósOuvindo na sala ao ladoTeus gemidos de prazerVieram saber de nósNem dei p'lo que aconteceuMas, mais veloz e mais esperta,Só te viram de raspãoVergonha passei-a eu:Diante da porta abertaEstava de calças na mão

Poemas 3

Poemas 1

Poemas 2

voltar

57. não te pergunto onde chegas?, de José Luís Peixoto, interpretado por Rui Moura 58. Vaga, no azul amplo solta, de Fernando Pessoa, interpretado por Patxi Andión 59. Há uma música do povo, de Fernando Pessoa, interpretado por Mariza 60. Ai Margarida, de Fernando Pessoa (Álvaro Campos), interpretado por Camané (Acompanhado por Mário Laginha) 61. Eros e Psique, de Fernando Pessoa, dito por Maria Bethânia 62. Gato que brincas na rua, de Fernando Pessoa, interpretado por Viviane 3. O amor, quando se revela, de Fernando Pessoa, cantado por Salvador Sobral 64. Cântico negro, de José Régio, dito por Diogo Infante 65. Não posso adiar o amor, de António Ramos Rosa, interpretado por Linha da frente 66. Fim, de Mário de Sá-Carneiro, interpretado por Trovante 67. O outro, de Mário Sá-Carneiro, interpretado por Adriana Cacanhotto 68. Cavalo à solta, de Ary dos Santos, cantado por Fernando Tordo e Jorge Palma 69. Alegria, de José Saramago, interpretado por Teresa Salgueiro 70. Ilha de Santiago, de Mário Lúcio Sousa, interpretado por Mayra Andrade 71. Verde anos, de Pedro Tamen, interpretado por Dulce Pontes 72. A gente não lê, de Carlos Tê, interpretado por Rui Veloso 73. No teu poema, de José Luís Tinoco, interpretado por Carlos do Carmo 74. Súplica, de Miguel Torga, interpretado por Vitor Blue 75. Estou além, de António Variações, interpretado por António Variações

José Luís Peixoto não te pergunto onde chegas? Interpretado por Rui Moura não te pergunto de onde chegas?,porque sei para onde vais.hoje é a hora exacta em que até o ventoaté os pássaros desistem.e a noite a teus pés é um instantee um destino.não te pergunto onde está o teu rosto,tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,onde está o teu rosto?nem te peço que incendeies o teu nomenuma nuvem nocturna,nem te procuro.és tu que me encontras.ficas no rio que passa,nada de um tempo que não existe,nem correntes, nem pedra, nem musgo.nem silêncio.

Fernando Pessoa Vaga, no azul amplo solta Interpretado por Patxi Andión Vaga, no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando. O meu passado não volta. Não é o que estou chorando. O que choro é diferente. Entra mais na alma da alma. Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma, E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece, Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece. Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade. Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.

Fernando Pessoa Há uma música do povo Interpretado por Mariza Há uma música do povo, Nem sei dizer se é um fado — Que ouvindo-a há um chiste novo No ser que tenho guardado... Ouvindo-a sou quem seria Se desejar fosse ser... É uma simples melodia Das que se aprendem a viver... E ouço-a embalado e sozinho... É essa mesma que eu quis... Perdi a fé e o caminho... Quem não fui é que é feliz. Mas é tão consoladora A vaga e triste canção... Que a minha alma já não chora Nem eu tenho coração... Se uma emoção estrangeira, Um erro de sonho ido... Canto de qualquer maneira E acaba com um sentido!

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) Ai, Margarida Cantado por Camané (acompanhado por Mário Laginha) Ai, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que farias tu com ela? — Tirava os brincos do prego, Casava c'um homem cego E ia morar para a Estrela. Mas, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que diria tua mãe? — (Ela conhece-me a fundo.) Que há muito parvo no mundo, E que eras parvo também. E, Margarida, Se eu te desse a minha vida No sentido de morrer? — Eu iria ao teu enterro, Mas achava que era um erro Querer amar sem viver. Mas, Margarida, Se este dar-te a minha vida Não fosse senão poesia? — Então, filho, nada feito. Fica tudo sem efeito. Nesta casa não se fia. Comunicado pelo Engenheiro Naval Sr. Álvaro de Campos em estado de inconsciência alcoólica.

Fernando Pessoa Eros e Psique Dito por Maria Bethânia Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino — Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa Gato que brincas na rua Interpretado por Viviane Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa O amor, quando se revela Interpretado por Salvador Sobral (Presságio) O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há-de dizer. Fala: parece que mente... Cala: parece esquecer... Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse P'ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...

José Régio Cântico negro Interpretado por Diogo Infante "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí!

Mário de Sá-Carneiro Fim Cantado por Trovante Quando eu morrer batam em latas,Rompam aos saltos e aos pinotes,Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas!Que o meu caixão vá sobre um burroAjaezado à andaluza:A um morto nada se recusa,E eu quero por força ir de burro!...

António Ramos Rosa Não posso adiar o amor interpretado por Linha da Frente Não posso adiar o amor para outro séculonão possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o ódio estale e crepite e ardasob as montanhas cinzentase montanhas cinzentasNão posso adiar este braçoque é uma arma de dois gumes amor e ódioNão posso adiarainda que a noite pese séculos sobre as costase a aurora indecisa demorenão posso adiar para outro século a minha vidanem o meu amornem o meu grito de libertaçãoNão posso adiar o coração.

Mário de Sá-Carneiro O outro Interpretado por Adriana Cacanhotto Eu não sou eu nem sou o outro,Sou qualquer coisa de intermédio:Pilar da ponte de tédioQue vai de mim para o Outro.

José Carlos Ary dos Santos Cavalo à solta Interpretado por Fernando Tordo e Jorge Palma Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve, breve instante da loucura Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa Em ti respiro em ti eu provo por ti consigo esta força que de novo em ti persigo em ti percorro cavalo à solta pela margem do teu corpo Minha alegria minha amargura minha coragem de correr contra a ternura. Por isso digo canção castigo amêndoa travo corpo alma amante amigo por isso canto por isso digo alpendre casa cama arca do meu trigo Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura

José Saramago Alegria Interpretado por Teresa Salgueiro Já ouço gritos ao longe Já diz a voz do amor A alegria do corpo O esquecimento da dor Já os ventos recolheram Já o verão se nos oferece Quantos frutos quantas fontes Mais o sol que nos aquece Já colho jasmins e nardos Já tenho colares de rosas E danço no meio da estrada As danças prodigiosas Já os sorrisos se dão Já se dão as voltas todas Ó certeza das certezas Ó alegria das bodas

Mário Lúcio Sousa Ilha de Santiago Interpretado por Mayra Andrade Ilha de Santiago Tem corpinho de algodón Saia de chita cu cordón Um par de brinco roda pión Na ilha de Santiago Tem nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gómi cu Zezé Nhu Raúl lá di fundo Ruber da Barca Na Ilha de Santiago Tem Caetaninho, tem Codé, Nhu Arique cu Ano Nobo Nha Bibinha lá di fundo Curral de Baxo Na Ilha de Santiago Tem Séma Lópi, tem Catchás, Djirga, Bilocas, Ney, Ntóni Dente d’Oro lá di fundo San Dimingo

Carlos Tê A gente não lê Interpretado por Rui Veloso Ai, senhor das furnasQue escuro vai dentro de nósRezar o terço ao fim da tardeSó para espantar a solidãoE rogar a Deus que nos guardeConfiar-lhe o destino na mãoQue adianta saber as marésOs frutos e as sementeirasTratar por tu os ofíciosEntender o suão e os animaisFalar o dialeto da terraConhecer-lhe o corpo pelos sinaisE do resto entender malSoletrar, assinar em cruzNão ver os vultos furtivosQue nos tramam por trás da luzAi, senhor das furnasQue escuro vai dentro de nósA gente morre logo ao nascerCom olhos rasos de lezíriaDe boca em boca passando o saberCom os provérbios que ficam na gíriaDe que nos vale esta purezaSem ler fica-se pederneiraAgita-se a solidão cá, no fundoFica-se sentado à soleiroA ouvir os ruídos do mundoE a entendê-los à nossa maneiraE carregar a superstiçãoDe ser pequeno, ser ninguémE não quebrar a tradiçãoQue dos nossos avós já vêm

Pedro Tamen Verdes anos Interpretado por Dulce Pontes Era o amor que chegava e partia: estarmos os dois era um calor que arrefecia sem antes nem depois… Era um segredo sem ninguém para ouvir: eram enganos e era um medo, a morte a rir nos nossos verdes anos... Teus olhos não eram paz, não eram consolação. O amor que o tempo traz o tempo o leva na mão. Foi o tempo que secou a flor que ainda não era. Como o Outono chegou no lugar da Primavera! No nosso sangue corria um vento de sermos sós. Nascia a noite e era dia, e o dia acabava em nós… O que em nós mal começava não teve nome de vida: era um beijo que se dava numa boca já perdida.

José Luís Tinoco No teu poema Interpretado por Carlos do Carmo No teu poemaExiste um verso em branco e sem medidaUm corpo que respira, um céu abertoJanela debruçada para a vidaNo teu poema existe a dor calada lá no fundoO passo da coragem em casa escuraE, aberta, uma varanda para o mundoExiste a noiteO riso e a voz refeita à luz do diaA festa da Senhora da AgoniaE o cansaçoDo corpo que adormece em cama friaExiste um rioA sina de quem nasce fraco ou forteO risco, a raiva e a luta de quem caiOu que resisteQue vence ou adormece antes da morteNo teu poemaExiste o grito e o eco da metralhaA dor que sei de cor mas não recitoE os sonos inquietos de quem falhaNo teu poemaExiste um canto, chão alentejanoA rua e o pregão de uma varinaE um barco assoprado a todo o panoExiste um rioO canto em vozes juntas, vozes certasCanção de uma só letraE um só destino a embarcarNo cais da nova nau das descobertasExiste um rioA sina de quem nasce fraco ou forteO risco, a raiva e a luta de quem caiOu que resisteQue vence ou adormece antes da morteNo teu poemaExiste a esperança acesa atrás do muroExiste tudo o mais que ainda escapaE um verso em branco à espera de futuro

António Variações Estou além Interpretado por António Variações Não consigo dominarEste estado de ansiedadeA pressa de chegarP'ra não chegar tardeNão sei do que é que eu fujoSerá desta solidãoMas porque é que eu recusoQuem quer dar-me a mãoVou continuar a procurarA quem eu me quero darPorque até aqui eu sóQuero quem quem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca viEsta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perderTenho pressa de sairQuero sentir ao chegarVontade de partirP'ra outro lugarVou continuar a procurarO meu mundoO meu lugarPorque até aqui eu sóEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouEsta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perderTenho pressa de sairQuero sentir ao chegarVontade de partirP'ra outro lugarVou continuar a procurarA minha formaO meu lugarPorque até aqui eu sóEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu nao vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vou

Miguel Torga Súplica Interpretado por Vitor Blue Agora que o silêncio é um mar sem ondas,E que nele posso navegar sem rumo,Não respondasÀs urgentes perguntasQue te fiz.Deixa-me ser felizAssim,Já tão longe de ti, como de mim.Perde-se a vida, a desejá-la tanto.Só soubemos sofrer, enquantoO nosso amorDurou.Mas o tempo passou,Há calmaria...Não perturbes a paz que me foi dada.Ouvir de novo a tua voz, seriaMatar a sede com água salgada.